Tubo de Ensaios

Por Daniel de Barros

Daniel Martins de Barros é professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP, Doutor em Ciências e Bacharel em Filosofia pela USP

Foi há muitos anos, coisa do século passado; não lembro exatamente o contexto, mas estávamos na praia em férias e comentei com um amigo que não eu via graça em surfar. “Prefiro ler Machado de Assis”, recordo-me de ter dito. Isso numa época em que ser nerd era feio, imagine. O fato de tal preferência ser considerada excêntrica mostra que existem prazeres que são socialmente mais valorizados do que outros.

O prazer intelectual, seja na forma de aprendizado, solução de problemas, apreciação estética, é um desses deleites que não goza de grande prestígio. Ao contrário, muitas vezes é considerado entediante. Num dos episódios de terror que os Simpsons fazem no Halloween, Lisa propõe a leitura do poema O corvo, de Edgar Allan Poe. “Espere um pouco”, reclama Bart, “Isso é um livro de escola!” indigna-se. Cultura, poesia, isso não pode ser divertido, lhe parece. “Não se preocupe, Bart. Você não vai aprender nada”, tranquiliza-o a irmã, como se dissesse: será divertido, não didático.

Uma forma de aliar diversão e prazer intelectual que vem sendo redescoberta são os jogos analógicos. Estudos de neuroimagem recentes demonstraram que o cérebro se compraz em descobrir soluções criativas: neurocientistas pediram que voluntários solucionassem enigmais enquanto tinham os cérebros escaneados por ressonância nuclear magnética. Os resultados mostraram que além das regiões corticais, ligadas raciocínio, áreas mais profundas do cérebro, intimamente relacionadas ao prazer, eram ativadas quando as soluções eram encontradas. Pensar é gostoso. Nos jogos de tabuleiro modernos, em que além do prazer da disputa entram em cena habilidades diversas como atenção, memória, cálculo, planejamento, encontramos verdadeiros playgrounds para nossa mente. E cada vez mais vêm sendo recheados de conteúdos.

Alguns exemplos recentes servem de ilustração. Há dois anos uma editora chamada Pythagoras lançou em Portugal o jogo Pessoa (publicado esse ano no Brasil pela editora Across the Board). Nele os jogadores assumem o papel de um heterônimo de Fernando Pessoa - Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Alberto Caeiro ou Ricardo Reis – para passear pelos lugares que serviram de inspiração ao poeta, reunir trechos de sua obra e organizá-los em poemas para conseguir pontos. Além de o manual ser repleto de referências históricas os jogadores entram em contato com a poesia de Pessoa nas cartas que precisam recolher.

Para quem não se sente atraído pela literatura, numa área do conhecimento completamente diferente está o jogo Salton Sea (lançado mundialmente em 2024 – inclusive no Brasil pela editora Devir). Ele está inserido no atualíssimo cenário de transição energética, e se passa no Lago Salton, na Califórnia. Aprendemos que, por ser localizado na falha de San Andreas, tal lago tem águas quentes que podem ser usadas para gerar energia geotérmica e são ricas em lítio, fundamental para criação de baterias. Os jogadores controlam engenheiros que devem se aproveitar dessas características únicas para gerar e vender energia, aprimorar equipamentos e até comprar ações das empresas para acumular mais pontos.

E para não faltar um exemplo da área de biológicas, o jogo Micélio (a ser lançado no segundo semestre de 2024 pela editora Mosaico) é baseado no ciclo de vida dos fungos. A partir de cartas com ilustrações lindas de fungos reais, com seus nomes populares e científicos, os jogadores devem expandir sua rede micelial, aproveitando a direção do vento para dispersar os esporos, crescer cogumelos e deixa-los apodrecer; quando um jogador conclui o ciclo completo de cinco cogumelos a partida termina, e aquele que criou os mais valiosos será o vencedor.

É muito significativo que eu me sinta obrigado a fazer a ressalva de que esses não são exemplos de jogos educativos. Como seu fosse a Lisa Simpson tendo que tranquilizar os leitores: calma, o objetivo aqui é diversão. Isso mostra como é forte o preconceito que nos leva a achar que aprendizado rouba o prazer.

Quando na verdade é o contrário: acrescentar prazer intelectual à diversão pode aumentar tanto o prazer, quanto a diversão.

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