No dia 27 de dezembro de 1831, sob o comando do capitão Robert FitzRoy e com patrocínio da Coroa Britânica, o navio HMS Beagle partiu da Inglaterra em direção à América do Sul. A bordo estava o naturalista Charles Darwin — até então desconhecido —, que registrou as observações da expedição. A rota passou por diversas partes do continente sul-americano, incluindo o Brasil, e seguiu até a Austrália, passando por Ilhas Galápagos, Taiti, entre outras.
Em 1839, três anos após o fim da travessia, as anotações de Darwin foram publicadas no terceiro volume da obra Narrative of the Surveying Voyages of His Majesty’s Ships Adventure and Beagle (1826-1836), que reuniu as experiências das travessias do HMS Adventure (1826 a 1830) e do HMS Beagle (1831 a 1836). Os registros se tornaram célebres: a viagem foi a base de formação da Teoria da Evolução, que transformou a ciência. “Foi, de longe, o acontecimento mais importante da minha vida e terminou toda a minha carreira”, reconheceu o naturalista em sua autobiografia, escrita quando já era idoso.
Editada em diversas línguas, inclusive português, A Viagem do Beagle acaba de ganhar uma nova versão sem cortes, a partir da tradução original, pela editora Edipro. “Este livro foi escrito por um Darwin que ainda não era o Darwin que conhecemos. Nada da evolução aparece ainda, mas existem partes desse quebra-cabeça, que foi completado 20 anos depois”, afirma o prefaciador da edição, Héctor Palma, doutor em ciências sociais e humanidades e professor da Universidade Nacional de San Martin, na Argentina, em entrevista a GALILEU.
!["A Viagem do Beagle", de Charles Darwin com tradução de Daniel Moreira Miranda; 640 páginas, editora Edipro, R$ 149 — Foto: Reprodução](https://s2-galileu.glbimg.com/vdvkwwte-49fobOpuS-h012jN5g=/0x0:302x437/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2024/M/s/HVn414QbuRekshhBWD1g/image002.jpg)
A análise de Palma — que é especialista em darwinismo e evolucionismo, além de autor de Salvajes y Civilizados, um estudo sobre o impacto da expedição sobre os povos indígenas da América — é, talvez, o grande destaque da publicação. Nela, o pesquisador revê a história contada sobre os fueguinos, nativos da Terra do Fogo, para provocar o leitor a refletir sobre as tensões e ambiguidades de Darwin.
“A visão de um inglês de classe média alta que descreve todas essas viagens e, sobretudo, as diferentes cidades que conhece, é rica e com alto nível detalhes", observa o argentino. "E o livro também mostra as limitações desse observador, desse homem que vem do centro de um império, com todos os preconceitos e limitações que tem. Acho que hoje esses aspectos talvez sejam mais interessantes até do que as questões puramente biológicas.”
Capturados pelo capitão do navio sob o argumento de que haviam roubado um bote, quatro fueguinos — entre eles, uma criança — foram levados à Inglaterra em um plano de aculturação. Para Palma, a história padrão contada de que esse teria sido mais um exemplo da arrogância do império britânico é parcial e simplista: embora as principais fontes, FitzRoy e Darwin, possam ser consideradas honestas e transparentes, elas foram perpassadas por crenças e preconceitos da época. Não se trata de um revisionismo histórico, mas de enxergar essas figuras como exemplos das tensões do século 19 na Europa, em vez de condená-las por seus relatos.
“É possível encontrar biógrafos e comentaristas que desejam apresentar um Darwin perverso, aristocrático, espião de Sua Majestade Britânica e tolo defensor do racismo mais vulgar; mas também há outros que imaginam um Darwin que se elevava acima de seu tempo e que também podia ser, além de antiescravista, um antirracista imaculado. Ele não foi, no entanto, nem uma coisa nem outra”, escreve Palma.
Para o prefaciador, o livro não foi importante somente na época em que foi publicado, mas permanece relevante até hoje. “Acho que é uma obra que sempre permite a releitura, mas devemos fazer isso com cuidado para não correr o risco de passar tudo pelo filtro do presente”, opina. A nova edição é mais uma oportunidade para ampliar as interpretações sobre uma das viagens — e um dos cientistas — mais importantes da história da ciência.