Saúde

Por Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) identificaram uma nova classe de moléculas capaz de frear a inflamação exacerbada típica da forma grave de Covid-19 sem prejudicar a resposta imune contra o vírus Sars-CoV-2.

Em experimentos com camundongos, os pesquisadores demonstraram que, ao bloquear a ligação de um peptídeo chamado C5a em seu receptor celular (a proteína C5aR1), a inflamação desencadeada pela tempestade de citocina é reduzida. Os resultados foram divulgados no The Journal of Clinical Investigation.

“Estamos estudando essa via já há alguns anos para dor neuropática e doença autoimune. E, quando surgiu a pandemia, logo desconfiamos que bloquear o receptor celular desse peptídeo [C5a] também poderia ser interessante contra a inflamação associada à Covid-19 grave. Isso porque sabemos que, apesar de o C5a ter um papel pró-inflamatório importante, essa via não tem grande atuação no combate à infecção. Trata-se de um mediador que, se bloqueado, não compromete a resposta do indivíduo contra o vírus”, explica Thiago Mattar Cunha, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e integrante do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP.

Durante a pandemia ficou evidente que a Covid-19 pode ter uma variação grande no que se refere à gravidade. Enquanto alguns pacientes apresentam sintomas leves ou são assintomáticos, parte dos infectados pelo Sars-CoV-2 desenvolve uma inflamação sistêmica potencialmente fatal desencadeada por uma resposta imune exacerbada – conhecida como tempestade de citocinas. Nesses casos, os pacientes geralmente passam dias internados em terapia intensiva, com necessidade de ventilação mecânica, e apresentam complicações como fibrose pulmonar e trombose.

Cunha explica que o C5 é um mediador inflamatório presente no plasma sanguíneo e integra o chamado sistema do complemento – parte da resposta imune responsável por formar a “cascata” de proteínas que induz uma série de respostas inflamatórias que visam combater a infecção.

Quando ocorre uma inflamação, o peptídeo é ativado (tornando-se a molécula C5a) e passa a ter função pró-inflamatória. “Esse aumento da produção de C5a está ligado a uma série de doenças inflamatórias, como sepse, artrite reumatoide, doença inflamatória do intestino, lúpus, psoríase e também a lesão pulmonar observada em casos graves de Covid-19”, afirma.

Estudos anteriores do CRID já haviam demonstrado que uma das principais vias relacionadas com a lesão pulmonar nos pacientes com Covid-19 era a netose – danos teciduais causados por um mecanismo imune chamado NET (sigla em inglês para rede extracelular neutrofílica), que consiste na saída do material genético contido no núcleo dos neutrófilos (um tipo de leucócito) em forma de redes, que são lançadas pelas células de defesa para o meio extracelular na tentativa de prender e matar bactérias.

Mas foi só após desenvolverem camundongos transgênicos, suscetíveis à Covid-19 e com o gene codificador da proteína C5 inativado, que os pesquisadores puderam elucidar o mecanismo pelo qual a via C5a participa da lesão pulmonar e da inflamação exacerbada observada em pacientes com a forma grave da doença.

De acordo com Cunha, foi possível observar no modelo animal que, quando os neutrófilos chegam ao pulmão do paciente, começam a liberar as NETs, que são lesivas tanto aos patógenos quanto às células do organismo. “É, portanto, uma via que está não apenas envolvida na morte de células epiteliais – o que demonstramos num dos nossos primeiros trabalhos sobre o tema –, como também possivelmente associada às inflamações por tromboembolia no pulmão dos pacientes com Covid-19”, explica o pesquisador.

O achado confirma o papel imunopatológico da sinalização C5a/C5aR1 na Covid-19 e indica que os antagonistas de C5aR1 (moléculas que bloqueiam a ligação com o receptor) podem ser úteis para o tratamento dos casos graves.

“São várias ações acontecendo. O peptídeo C5a atua aumentando a formação das NETs. Já o neutrófilo é recrutado para o pulmão porque há uma produção intensa de citocinas nessa fase da doença. E o C5a ativa ainda mais os neutrófilos no pulmão que, quando ficam superativados, produzem mais NETs. Com tudo isso, é provável que a via esteja envolvida na amplificação da lesão e da inflamação pulmonar”, avalia o pesquisador.

Desde antes do surgimento da Covid-19, o grupo do CRID já vinha colaborando com a farmacêutica italiana Dompé no desenvolvimento de moléculas capazes de bloquear o receptor C5aR1. Parte do trabalho foi publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS) em 2014.

“No nosso estudo recente, os camundongos que receberam os antagonistas de C5aR1 apresentaram melhora da inflamação. Também demonstramos que, ao bloquear esse sistema, o controle da infecção não é alterado, ou seja, a carga viral continuou a mesma entre os animais que foram tratados com o antagonista e os que não foram”, diz.

Melhorar a inflamação sem impactar a carga viral é um atributo importante da nova molécula. Isso porque, atualmente, uma das principais estratégias para tratar a Covid-19 é o uso de corticoides, medicamentos com ação anti-inflamatória e imunossupressora. Essa classe de fármacos, portanto, reduz a resposta imune contra o SARS-CoV-2 e também contra infecções secundárias, como a pneumonia bacteriana, por exemplo.

Apesar de os pesquisadores do CRID terem feito apenas experimentos em animais, Cunha conta que um estudo publicado no final do ano passado na revista Lancet por grupos europeus lançou luz sobre os benefícios de bloquear a via C5a/C5aR1 em humanos. No estudo, o grupo descreveu o resultado de testes clínicos de fase 3 com o uso de anticorpo monoclonal contra o peptídeo C5a, mostrando ser uma estratégia viável para combater a inflamação exacerbada da Covid-19.

“Quando o anticorpo se liga à molécula de C5a, ele impede a ação no receptor. Isso significa que os testes clínicos estão trabalhando na mesma via que estamos estudando, sinal de que estamos no caminho certo”, comenta Cunha.

A vantagem da estratégia brasileira é que o custo do tratamento com antagonistas do receptor C5aR1 é muito mais baixo do que a terapia com anticorpos monoclonais.

“Os dados desse estudo nos dão evidências clínicas de que bloquear a via C5a/C5aR1 funciona, é um tratamento benéfico. Já trabalhamos com essa via para doenças autoimunes e dor. Acredito que o próximo passo seja iniciar testes clínicos com a molécula antagonista”, comenta.

O artigo C5aR1 signaling triggers lung immunopathology in COVID-19 through neutrophil extracellular traps pode ser lido em: www.jci.org/articles/view/163105.

Mais recente Próxima Como uma mulher saudável descobriu câncer de pulmão por pequeno nódulo
Mais de Galileu

Dados de pesquisadores brasileiros mostram que o patógeno passou por alterações que o tornaram mais agressivo, contribuindo para o ressurgimento da doença no Brasil entre 2023 e 2024

Casos da febre do oropouche crescem quase 200 vezes em relação à última década

Em testes feitos em laboratório, o material se mostrou promissor. No entanto, são necessários mais estudos, que analisem como esses curativos interagem com órgãos humanos

Band-aid cardíaco impresso em 3D pode reparar tecidos do coração

Em águas turbulentas, onde peixes solitários necessitam de mais esforço para nadar, os cardumes se protegem e podem fazer com que animais poupem energia

Nadar em cardumes pode fazer peixes economizarem energia

Supostos restos mortais do compositor alemão serviram como base a estudos anatômicos que ajudaram a produzir a reconstrução facial, chefiada por brasileiro. Confira o resultado

Recriado em 3D o rosto de Bach, compositor morto no século 18

Aves são primordiais na dispersão e distribuição de sementes, e seus hábitos alimentares podem mudar ecossistema. É o que notou uma nova pesquisa, que contou com participação brasileira

Dieta de pássaros é um indicador da conservação de florestas, diz estudo

O Estádio Ullevaal, na Noruega, utiliza um sistema de painéis fotovoltaicos vertical, que aumenta o potencial de geração de energia pelo Sol em 20 a 30%

Maior telhado solar do mundo é instalado na cobertura de estádio de futebol

Usando técnicas mais modernas, uma dupla de arqueólogas voltou a investigar a curiosa múmia egípcia, descoberta 90 anos atrás. Veja aqui o que eles descobriram

Investigada múmia da "mulher que grita", que pode ter agonizado há 3500 anos

Descoberto por acidente, o material absorve mais luz do que tintas pretas comuns, e pode ter aplicações na astronomia, óptica e energia solar

Criado novo material ultrapreto que absorve quase 99% da luz

Desde que foi liberada para participar dos Jogos Olímpicos 2024, boxeadora Imane Khelif é alvo de alegações sobre sua identidade. Situação ganhou novos contornos após vitória nesta quinta-feira (1)

O que é intersexo? Caso de boxeadora em Paris 2024 gera onda de desinformação

É possível ativar áreas do cérebro relacionadas ao prazer encontrando soluções para problemas difíceis, por exemplo. Entenda por que pensar pode ser prazeroso na coluna de Daniel Barros para a GALILEU

Pensar é gostoso – pelo fim do preconceito contra o prazer intelectual