Saúde

Por Vanessa Centamori

Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, um casal e mais três filhos estavam vivendo momentos de pânico dentro de casa. Inicialmente, eles optaram por não abandonar a moradia, mas, três dias após intensas chuvas, a residência ficou submersa até o segundo andar. O produtor de eventos Renan Silva Retamozo dos Santos, de 34 anos, participava de missões de resgate em um barco quando os encontrou. “Os cinco desmaiaram praticamente juntos. Foi bem complicado”, recorda em entrevista à GALILEU.

Aquele salvamento cansativo e perigoso ocorreu após ele participar de quatro dias seguidos de missões para salvar as vidas de animais e pessoas nas enchentes que assolam o estado. “Eu tive que carregar pela água os cinco nadando, mergulhando. Então foi onde eu tive mais contato com essa água da enchente”, relata Retamozo.

Não muito tempo depois, o corpo do gaúcho começou a apresentar os primeiros sintomas de uma grave doença: a leptospirose. Junto dela, veio o cansaço extremo: “Eu fiquei nos resgates durante os quatro dias, 24 horas por dia, sem dormir, sem comer, muito envolvido naquele propósito de salvar as pessoas. Eu só comia um sanduíche, um pão, alguma coisa, bebia uma garrafinha de água e continuava”.

Além da fadiga, Retamozo começou a sentir dificuldade para respirar e dores no corpo. Ele estava na base onde ocorriam os resgates quando resolveu sentar e deitar para recuperar o fôlego. Em vez disso, desmaiou repentinamente.

Renan Silva Retamozo dos Santos, de 34 anos — Foto: Arquivo Pessoal
Renan Silva Retamozo dos Santos, de 34 anos — Foto: Arquivo Pessoal

Leptospirose: a doença das enchentes

Quando deu por si, o voluntário já estava em uma ambulância, a caminho da UPA Lomba do Pinheiro. Ficou hospitalizado na Associação Hospitalar Vila Nova, lá mesmo em Porto Alegre. Seu caso é apenas um entre 206 registros de leptospirose confirmados pela Secretaria Estadual da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul até esta segunda-feira (3).

Oito pessoas já morreram da doença no estado. Além dos óbitos confirmados, outras 12 mortes estão em investigação. Ao todo, foram notificadas 3.030 ocorrências da enfermidade, dentre as quais somente 6,8% foram confirmadas.

A leptospirose pode ocorrer em qualquer época do ano, mas as chances de contágio são maiores quando há inundações, enxurradas e lama, de acordo com a SES do Rio Grande do Sul. Uma pessoa pode pegar a doença ao ter contato com a urina de animais infectados pela bactéria Leptospira (principalmente roedores). Se houver algum ferimento ou arranhão, o microrganismo penetra com mais facilidade no corpo humano.

Os primeiros sintomas podem surgir depois de até 30 dias, geralmente começando entre o 4º e o 7º dia após a exposição. Entre os principais incômodos, estão febre, dor de cabeça, dor no corpo (principalmente nas panturrilhas), vômitos e pele amarelada (em casos mais graves).

Segundo o Ministério da Saúde, a doença tem um risco de letalidade que pode chegar a 40% nos casos mais graves. O tratamento com o uso de antibióticos deve ser iniciado no momento da suspeita. ”Se a gente não tratar o paciente, ele vai evoluir com forma grave. Então é uma doença que a gente pode considerar potencialmente grave”, alerta André Dói, patologista clínico e diretor científico da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), em entrevista à GALILEU.

Nas enchentes, a transmissão de leptospirose depende de dois fatores principais: a condição individual de saúde da pessoa e a água da inundação. “Não são todos que têm contato com a água que vão pegar porque nem toda a água vai ter uma quantidade de bactérias suficiente para causar doença. Mas aqueles que entrarem em contato com a água que está contaminada correm um risco muito grande de desenvolver a enfermidade”, explica Dói.

Tragédia no Rio Grande do Sul — Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Tragédia no Rio Grande do Sul — Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Retamozo se arriscou entrando na água suja de bermuda e tênis para salvar 267 pessoas, 36 cachorros, 23 gatos e 2 coelhos. Foi necessária uma semana de internação para se recuperar. O voluntário teve dor nas pernas e nas panturrilhas principalmente. Apesar de ter chegado inconsciente e sob suporte de oxigênio à UPA, sua recuperação foi tranquila.

Mas o transtorno continuou na vida dele e de muitas outras pessoas afetadas pelas chuvas: após estar 100% recuperado, o gaúcho teve que deixar sua casa devido um alerta de perigo de deslizamento da Defesa Civil na rua onde mora. Nesse meio tempo, sua mãe esteve internada devido a um problema intestinal e a uma infecção não relacionada com as enchentes.

Dengue, Covid-19 e todas as pragas

A ideia de ajudar as pessoas durante a tragédia no Rio Grande do Sul veio quando Retamozo ainda estava se recuperando de uma dengue. Como ainda não podia estar fisicamente nos locais de resgate, decidiu abrir sua casa, onde ele mora com o pai e a mãe, para os desabrigados. Chegou a hospedar três famílias (13 pessoas e 4 cachorros). Assim que ganhou forças, participou dos resgates com diversos voluntários em áreas alagadas de Porto Alegre.

Para André Dói, é importante lembrar que outras doenças que já vinham ocorrendo no país também estão afetando as regiões de enchentes, como é o caso da própria dengue, influenza e Covid-19. “Quando você tem pessoas que ficam em abrigos com aglomeração de pessoas, a gente sabe que também pode aumentar o risco de outras infecções. Como já foi muito reportado, também aumenta o número de casos de escabiose ou de pediculose, que é piolho”, afirma o patologista.

Sobrevoo de áreas afetadas pelas chuvas em Canoas, no Rio Grande do Sul, em maio de 2024 — Foto: Ricardo Stuckert/PR via Flickr
Sobrevoo de áreas afetadas pelas chuvas em Canoas, no Rio Grande do Sul, em maio de 2024 — Foto: Ricardo Stuckert/PR via Flickr

É possível até mesmo a ocorrência de sarna nos abrigos, bem como a transmissão de doenças pela via aérea, como meningite e tuberculose. É o que conta Alessandro C. Pasqualoto, Chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Porto Alegre. Ele relata que as infecções decorrentes das enchentes ainda não chegaram à sua plenitude, porque muitas têm um período de incubação mais longo, manifestando-se só semanas depois da exposição.

Pasqualoto tem observado casos usuais de pneumonias, infecções em peles e partes moles, gripe e, eventualmente, de dengue ou leptospirose (embora sejam poucos). Outra doença que poderia ocorrer com as inundações, segundo ele, é a raiva humana por conta dos resgates de animais não vacinados, no entanto, não há registros da mesma desde os anos 1980 no Rio Grande do Sul.

Casos sérios de hepatite A ainda não foram registrados em quantidades significativas, mas podem se manifestar um mês depois da exposição à água contaminada. “A maioria dos casos são leves, assintomáticos ou pouco sintomáticos. Então talvez ela [a hepatite] esteja circulando e nós não estejamos percebendo”, observa Pasqualoto, que também é Presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia (SGI).

Primeiros-socorros psicológicos

Os riscos físicos não são a única preocupação: os socorristas e sobreviventes da tragédia no Rio Grande do Sul enfrentam traumas psicológicos. Para situações como essa, a pesquisadora e especialista em situações de desastres, Ticiana Paiva, psicóloga e head de saúde mental da healthtech Starbem, defende uma metodologia chancelada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) chamada Psychological First Aid (“Primeiros Cuidados Psicológicos”, PCP).

Este método, que pode ser feito por qualquer pessoa (profissional ou não) é detalhado em um guia da OMS (acesse aqui) e consiste “em uma resposta humana e de apoio às pessoas em situação de sofrimento e com necessidade de apoio”. Trata-se de uma alternativa ao “defriefing psicológico”, uma entrevista em profundidade realizada após um incidente crítico, considerada ineficaz por estudos.

Segundo Paiva, em linhas gerais, os PCP são "um espaço de expressão do que o sobrevivente está vivendo, um espaço sem julgamento e de muita empatia". Conforme a OMS, o método não é necessariamente uma discussão detalhada sobre o evento que causou o sofrimento, nem solicita que as pessoas analisem o que aconteceu ou que relatem os eventos ocorridos em ordem cronológica.

A psicóloga explica que, na fase inicial do impacto do desastre, "existem algumas reações muito comuns que as pessoas vivenciam, como apatia, tristeza e medo generalizado quando começa a chover de novo". Porém, não se pode falar ainda que ocorrem transtornos mentais. Só mais para frente, quando as cidades gaúchas começarem a ser reconstruídas, que haverá maior probabilidade de diagnósticos como transtorno de estresse pós-traumático e depressão.

"A gente pode ter um estado com níveis de dependência química, abuso de álcool e drogas, taxas de suicídio bem altos em decorrência desse desastre se as pessoas não forem bem assistidas", alerta Paiva. "É muito importante que a gente possa ter ações muito sérias, consistentes, baseadas na ciência, para cuidar dessas pessoas, senão a gente pode ter uma situação grave no futuro."

Vacinas recomendadas

Uma medida com comprovação científica que é essencial para evitar surtos de doenças contagiosas é a vacinação. Como muitas pessoas drasticamente deixaram suas casas alagadas para ir até abrigos, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiu uma nota técnica em conjunto com a SGI e a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) recomendando que as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul sejam vacinadas.

Além das vacinas de rotina, a recomendação é que sejam administradas na população doses contra influenza, Covid-19, tríplice viral (sarampo, rubéola, caxumba), hepatite A, tétano e raiva. Aos socorristas, é citada também a vacinação contra febre tifoide.

Operação de resgate com o helicóptero do Corpo de Bombeiros na Região Metropolitana de Porto Alegre — Foto: Lauro Alves/Secom
Operação de resgate com o helicóptero do Corpo de Bombeiros na Região Metropolitana de Porto Alegre — Foto: Lauro Alves/Secom

Profilaxia e diagnósticos complicados

Já a leptospirose pode ser prevenida com o uso de medicamentos. Em outra nota técnica, a SBI e a SGI reforçam que tomar antibióticos como profilaxia não deve ser uma conduta de rotina: deve ser aplicada só em socorristas e voluntários desprotegidos, bem como pessoas expostas por longo período à água de enchente após avaliação médica criteriosa.

A recomendação se baseou em algumas revisões e publicações, incluindo um guia de tratamento publicado pela OMS em 2003, que apontam que a profilaxia com antimicrobianos pode ser realizada em situações de alto risco. Entretanto, a nota salienta que a profilaxia com antimicrobianos não é 100% eficaz, e, mesmo assim, a pessoa pode adquirir doença.

“A gente fez isso porque tinha muita gente na internet já dizendo que todo mundo tinha que usar antibióticos", explica Pasqualoto, um dos autores do documento. "E aí ficou meio que um pânico de que era a solução mágica para todos os problemas, mas não é bem assim."

As pesquisas sobre esse tipo de profilaxia foram realizadas com baixo número de participantes, falhas de randomização, entre outros problemas. "Existe benefício [da profilaxia], mas o benefício vem de estudos que, em geral, não foram feitos em enchentes. Foram feitos em soldados que se meteram lá no meio de um esgoto de uma região de conflito", exemplifica o médico.

Outra questão complicada sobre a leptospirose é o atraso no diagnóstico e, consequentemente, no registro de casos. Para Pasqualoto, é preciso haver uma descentralização das amostras, que estão nas mãos do Laboratório Central do Estado do Rio Grande do Sul (Lacen/RS).

Operação de resgate em Porto Alegre — Foto: Lauro Alves/Secom
Operação de resgate em Porto Alegre — Foto: Lauro Alves/Secom

O Lacen/RS dispõe de dois diagnósticos: o de biologia molecular (RT-PCR) e o sorológico. O primeiro detecta a bactéria Leptospira presente no organismo do paciente com até sete dias de sintomas; enquanto o segundo identifica o anticorpo produzido pelo organismo em resposta à infecção causada pela bactéria depois de uma semana de sintomas ou mais.

Os resultados vão para um sistema chamado Gerenciador de Ambiente Laboratorial (GAL). "O estado está acumulando amostra, porque está fazendo mutirão para dar conta dos resultados. Só que esse resultado vai para um sistema informatizado que ninguém tem acesso", critica o infectologista. "O acesso é só para o cara que é médico do controle de infecção do hospital x ou y. Não está funcionando bem o diagnóstico."

Águas passadas?

Depois que as águas das enchentes forem embora, o risco de leptospirose e outras doenças ainda continua, já que o barro pode concentrar bactérias Leptospira e outros microrganismos. Os lençóis freáticos e as fontes de água potável podem estar contaminadas por vírus ou bactérias causadoras de diarreia. “A água potável quando você tem uma situação de enchente é uma das primeiras coisas que se esgota. Porque até a água da torneira que a gente usa pode contaminar. É importante ferver a água e só beber água potável”, recomenda Dói.

Com a diminuição das chuvas, é importante também evitar acúmulo de água parada quando possível. “Naturalmente, quando a água abaixar e tiver muitas fossas e você não tomar medidas de prevenção necessárias, a gente pode enfrentar um caso de aumento de dengue.”

Outro problema que pode surgir com mais intensidade nas casas e estabelecimentos comerciais após a inundação é o mofo, que aparece sempre com três fatores: umidade, calor e pouca ventilação. Pasqualoto pontua que a combinação põe em risco a saúde, especialmente de pessoas asmáticas, crianças, indivíduos com alergias de pele, doenças respiratórias e imunossuprimidos.

“As pessoas, quando respiram o fungo, diferente da doença alérgica, podem ter uma doença chamada de invasiva. O fungo entra pelo pulmão ou pelo nariz e invade os tecidos e pode levar a doenças muito graves”, explica o infectologista.”Mas essa é uma preocupação de médio prazo, porque no momento está muito frio e a água está presente em tudo ainda. Mas logo que a água abaixe, a tendência é que o mofo apareça também.”

Você pode conferir orientações sobre como se prevenir de doenças nos abrigos e consultar um guia de manejo de infecções relacionadas a desastres climáticos no site da SBI.

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