Saúde

Por Caio Delcolli, com edição de Nathalie Provoste

Quando tinha 20 anos, Lucas Raniel foi a uma festa que inaugurava mais um ano letivo na sua universidade. Como de costume, o evento atraiu centenas de pessoas que queriam se divertir em um open bar de chope; mas, além da bebida, havia universitários usando cocaína, fumando maconha e inalando lança-perfume. Raniel se uniu a eles. Após chegar em casa, abriu um aplicativo no celular e marcou um encontro com um homem que também usava cocaína.

Com a nova companhia, o jovem inalou o estimulante junto a bebidas alcoólicas; depois, foi levado até um quarto para ter relações sexuais. O sujeito não usou camisinha — e Raniel, que mal estava consciente durante a transa, descobriu posteriormente que havia contraído o HIV (vírus da imunodeficiência humana). “Eu estava vulnerável tanto por causa da cocaína quanto do álcool”, diz a GALILEU.

Ao saber que foi infectado, Raniel entrou em pânico. Tentou cometer suicídio duas vezes antes de finalmente aceitar o diagnóstico, o que aconteceu após ele derrubar preconceitos estudando o tema e entendendo que o vírus não é sinônimo de morte há muito tempo. Hoje com 32 anos, ele é comunicólogo na pauta de prevenção de ISTs e vivência com o HIV. Um dos assuntos que aborda em suas redes sociais, nas quais reúne milhares de seguidores, conversa com a sua história: trata-se do chemsex.

União das palavras em inglês chemical (químico) e sex (sexo), chemsex é o nome que vem sendo dado à ingestão voluntária de drogas psicoativas e não psicoativas ao participar de relações sexuais. Especialistas ainda não chegaram a uma definição universal de quais tipos de substâncias caracterizam essa prática; mas, em geral, são consideradas drogas como a metanfetamina (que usuários podem chamar de “Tina” ou “Crystal”), ketamina, cocaína, MDMA (ecstasy) e gama hidroxibutirato (GHB), que é usado como facilitador em crimes de estupro e é popularmente conhecido como “Boa Noite, Cinderela”. Sob os efeitos dessas substâncias, adeptos do chemsex por vezes engajam em maratonas de sexo que duram dias — com pausas para se alimentar ou descansar — ou até mesmo semanas.

A prática é particularmente associada aos homens que fazem sexo com homens (HSH) e transgêneros, e normalmente ocorre em festas de sexo, motéis ou na intimidade do lares dos adeptos, especialmente em centros urbanos. O primeiro contato desses indivíduos pode acontecer em aplicativos de relacionamento, especialmente os que têm os HSH como principal público. O Grindr, que tem 13 milhões de usuários ao redor do mundo, é um dos citados em estudos e reportagens sobre o “sexo químico” — nele, adeptos do chemsex costumam se identificar com emojis específicos em seus perfis. Por exemplo, o de diamante quer dizer que o usuário fuma metanfetamina, enquanto o de foguete significa que ele prefere injetar a droga. Até a publicação desta matéria, a empresa não respondeu ao pedido da GALILEU por uma nota de posicionamento.

No Brasil, o chemsex tem ganhado visibilidade em redes sociais e rodas de conversa — e, aos poucos, tem virado objeto de estudos. Um artigo que jogou luz sobre a prática por aqui foi publicado no Cadernos de Saúde Pública (CDP) em 2020, e se baseou em uma pesquisa multicêntrica online com 2.361 indivíduos no Brasil e em Portugal durante a pandemia de Covid-19. Dentre os respondentes, 38,9% afirmaram ter feito chemsex durante o período, que foi marcado por medidas sanitárias restritivas; e, desse grupo, 95% disseram ter feito “sexo químico” com um parceiro casual.

Outro estudo de 2020, desta vez realizado com 1.048 HSH no Rio de Janeiro e publicado no periódico Drug and Alcohol Dependence, detectou uma prevalência de 64% do uso de substâncias no sexo. Nesse grupo de adeptos, 27% haviam tido relações sexuais sob efeito combinado do álcool e outras drogas; 28% tinham apenas ingerido bebidas alcoólicas; e 9% focaram em outras substâncias na hora de se relacionar. Além disso, riscos moderados ou altos de transtornos do uso de substâncias foram associados ao chemsex.

Conforme a prática fica mais conhecida, especialistas na área da saúde têm alertado para os riscos do chemsex, que incluem o abuso de drogas e a prevenção reduzida ou inexistente contra as ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) quando os adeptos estão inebriados.

E não adianta nos deixarmos levar por moralismos ao abordar esse tópico, afirma Lucas Naufal Macedo, psiquiatra e pesquisador pelo Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e de Prevenção aos Desfechos Negativos associados ao Comportamento Sexual (Aisep), filiado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “Isso não tem impacto na prevenção e no tratamento, e pode fazer a pessoa não se sentir acolhida e compreendida”, destaca. “É importante conversarmos sobre o que está por trás do chemsex enquanto comportamento — se é uma questão de desinibição, vício ou até mesmo um caso de alteração de humor, em que a pessoa precisa de um estímulo maior para sentir prazer.”

Pesquisadores alertam para os perigos do chemsex e a prevenção reduzida ou inexistente contra as ISTs — Foto: Getty Images
Pesquisadores alertam para os perigos do chemsex e a prevenção reduzida ou inexistente contra as ISTs — Foto: Getty Images

Percepção alterada

O chemsex atrai praticantes pelo fato das substâncias psicoativas alterarem a percepção sensorial e intensificarem o prazer. “Elas também facilitam e prolongam o sexo, e têm papéis desinibitórios”, explica Macedo. Não surpreendentemente, outras substâncias presentes no menu habitual do “sexo químico” são o Viagra — medicamento usado no tratamento da disfunção erétil que pode provocar uma ereção de até quatro horas — e os poppers (nitritos de alquila), cuja inalação provoca o relaxamento muscular e, assim, amplia o prazer.

Uma pesquisa publicada em 2023 pelo grupo ReShape/International HIV Partnerships (ReShape/IHP) fornece dados sobre o porquê do chemsex ter ganhado adeptos ao redor do mundo. Dos 400 respondentes, 66% consideram a prática “libertadora”; 63% a veem como facilitadora de fantasias; e 58% dizem que as drogas os deixam mais relaxados, o que melhoraria a relação sexual. Além disso, 48% sentem que, no chemsex, há menos vergonha em relação ao sexo com homens, à identidade gay/bissexual ou à identidade e a expressão de gênero.

Por outro lado, os participantes também reconheceram riscos associados ao “sexo químico”. As mais citadas foram a dependência química (64,25%), problemas de saúde mental (61,25%) e dificuldades com a abstinência (42,50%). Há, ainda, o risco de overdose. “A droga que a gente mais costuma ver [no chemsex] é o GHB. Doses altas dele podem levar ao infarto. E, aqui no Brasil, a metanfetamina está chegando”, alerta Macedo. Se usado continuamente, o “crystal” causa danos irreversíveis ao cérebro, afetando as células do lobo frontal, núcleo caudado e hipocampo — o que gera problemas como depressão, insônia, apatia, irritabilidade e ansiedade, além de poder estimular transtornos de personalidade.

O problema está na constância do chemsex, que leva seus adeptos a preferirem fazer sexo apenas sob efeito de drogas. “É uma questão de saúde pública”, afirma o pesquisador do Aisep. “Essas substâncias têm um poder aditivo muito grande. Tudo bem haver um espaço para experimentar coisas, mas ter prazer sexual só com uso de substância não é saudável.” Além disso, a alteração do estado mental dos praticantes de chemsex facilita episódios de violência. “Quando desacordada, a pessoa pode ser vítima de estupro ou assédio. Ou o contrário. Alterado, você pode não perceber o estado de consentimento do outro e negligenciá-lo. Mas quando você mistura prazer e perigo, o prazer fala mais alto que os perigos inerentes a ele”, reflete Macedo.

Essas substâncias têm um poder aditivo muito grande. Tudo bem haver um espaço para experimentar coisas, mas ter prazer sexual só com uso de substância não é saudável
— Lucas Naufal Macedo, psiquiatra e pesquisador pelo Aisep

Outra preocupação sobre misturar sexo e drogas é o aumento do risco de ISTs, como herpes genital, HPV, gonorreia, sífilis e aids. Esse temor aparece em um momento no qual o Brasil já vê um crescimento nos diagnósticos de algumas dessas doenças em determinados grupos, conforme relatórios do Ministério da Saúde.

Segundo o Boletim Epidemiológico sobre Sífilis, publicado em 2023, as taxas de detecção de sífilis adquirida tiveram um aumento de 23% entre 2021 e 2022 — foram de 80,7 para 99,2 casos por 100 mil habitantes, respectivamente. Outro exemplo é a aids: de acordo com Boletim Epidemiológico sobre HIV/aids, jovens de 25 a 29 anos vêm apresentando as maiores taxas de detecção da doença desde 2017. Em 2022, esse grupo atingiu o patamar de 54,4 casos por 100 mil habitantes.

Hoje ex-adepto do chemsex, Raniel sugere duas formas de reduzir possíveis danos do “sexo químico”: a testagem de ISTs e o uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que envolve medicamentos antirretrovirais capazes de bloquear no organismo humano os “caminhos” pelos quais o vírus passaria para causar a contaminação. Disponível gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS), a PrEP é recomendada para qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade para o vírus da aids — como os praticantes do chemsex, conforme cita o próprio Ministério da Saúde em seu portal. Vale frisar, no entanto, que essa profilaxia não protege de outras ISTs, que também podem ser evitadas com o uso de preservativos masculinos e femininos, disponíveis gratuitamente em qualquer serviço público de saúde.

Saúde mental dos adeptos a prática deve ser levada em consideração — Foto: Getty Images
Saúde mental dos adeptos a prática deve ser levada em consideração — Foto: Getty Images

Relação consigo mesmo

O chemsex é muito mais do que uma questão física, no entanto. Embora a prática tenha sido frequentemente vista pela ótica da prevenção às drogas e dos cuidados com a saúde sexual, é preciso ter em vista “os estigmas sociais e as discriminações em torno de sexualidades, classes e questões de saúde mental”, como concluiu a pesquisa do ReShape/IHP.

Pela perspectiva social, é importante notar que o “sexo químico” tem diferenças de grupo para grupo. “O chemsex é um fenômeno cultural, sexual e político muito bem instaurado em uma comunidade — a de homens que fazem sexo com homens”, afirma Allan Gomes de Lorena, sanitarista mestre em saúde coletiva pela USP.

“Normalmente, eles têm maior poder aquisitivo e de escolha de drogas e parceiros, diferente de quem está na periferia. Esse papo de chemsex, um termo em inglês, não dialoga com a periferia. Quem está em Itaquera [bairro da Zona Leste de São Paulo], por exemplo, chama de ‘colocação’.” Na pesquisa do ReShape/IHP, 7% dos respondentes sequer conheciam um termo específico para essa prática. Para os autores, essa ausência de terminologia adequada pode ter vários fatores, incluindo “a exposição limitada a informações internacionais sobre o tema, o surgimento relativamente recente do fenômeno e o estigma generalizado e tabu que envolve o assunto”.

Ainda no campo social, o chemsex pode ser em parte associado ao estresse de minorias — isto é, questões de saúde mental relacionadas às opressões vividas por minorias sociais, conforme explica Amauri Krizizanowski Junior, psicanalista e pesquisador de gênero e sexualidade. É que todo mundo leva ao sexo suas histórias pessoais; e, no caso dos LGBTQIA+, essas vivências podem estar atravessadas por angústias e faltas emocionais. O prazer ampliado pelas drogas poderia ajudar a extravasar essas questões.

Há outras explicações além dessa. “O que pode motivar alguém a praticar o chemsex é o encontro com um prazer nunca sentido ou que já foi sentido e a pessoa quer sentir de novo; uma manifestação desse sujeito que demanda formas e recursos para obter o prazer”, afirma o psicanalista. Para alguns, o chemsex pode ser um “atalho” para se sentir mais à vontade no sexo, como alguns participantes da pesquisa do ReShape/IHP apontaram. “Esse prazer sob efeito de substâncias pode ser pensado como uma incapacidade do sujeito de se encontrar com um prazer construído, o que demanda tempo, vínculo, incentivo.”

Por que esse corpo não pode ter limites?’ Quando a prática sexual sem drogas é incentivada, há o encontro do prazer com as coisas que vêm junto dele — lembranças, marcas, histórias
— Amauri Krizizanowski Junior, pesquisador de gênero e sexualidade

Por isso, Krizizanowski defende que adeptos do chemsex que precisem de ajuda busquem um tratamento de diversas frentes. Ele propõe uma abordagem baseada no modelo biopsicossocial: em parte biológica, devido à necessidade de desintoxicação; em parte psicológica, para entender os “vazios” com que o paciente lida; e, por fim, social, para compreender de que forma fatores como a cultura e as relações sociais afetam o indivíduo. “[É perguntar:] ‘Por que esse corpo não pode descansar? Por que ele não pode ter limites?’ Quando a prática sexual sem drogas é incentivada, há o encontro do prazer com as coisas que vêm junto dele — lembranças, marcas, histórias”, explica.

O pesquisador e psicanalista também assegura que, com a reintegração à sobriedade, o indivíduo pode levar uma vida com mais limites, e também mais qualidade. Raniel ecoa o conselho de Krizizanowski. “Costumo falar a quem está tentando se afastar do universo do chemsex e das pessoas que o praticam que busquem uma rede de apoio e façam terapia. Quem não tem condição financeira de pagar por um terapeuta pode recorrer aos CAPS [Centros de Atenção Psicossocial] ou ir atrás das redes de tratamento para HIV, que são espaços onde vão te acolher sem julgamento”, recomenda. “Você vai ter a sensação de pertencimento. E sem a necessidade da droga contínua dentro das relações.”

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