A perda de olfato foi um dos principais sintomas de pacientes de Covid-19 durante a pandemia. Além disso, pode ser uma indicação precoce de doenças neurodegenerativas como Alzheimer e Parkinson. Pensando em tornar mais eficaz o diagnóstico de problemas olfativos, cientistas brasileiros criaram um novo teste digital para identificar os odores.
O teste funciona em um tablet chamado MultiScent-20, que é fabricado pela startup de tecnologia digital NoAr Brasil. O número 20 não é à toa: existem no interior do aparelho 20 fragrâncias diferentes, que são borrifadas no nariz de quem usa pelo tablet durante os testes.
Um estudo científico, que fez a validação do teste digital, foi publicado na revista Springer Nature. A pesquisa foi liderada pelo médico otorrinolaringologista Marcio Nakanishi, pesquisador da Universidade de Brasília (UNB), e envolveu também, Pedro Renato Brandão, médico especialista em neurologia. Além deles, a especialista em perfumaria, Claudia Galvão, CEO da startup NoAr Brasil, teve participação na pesquisa e foi responsável por criar o dispositivo.
O estudo testou 1832 voluntários. Pessoas sem apresentar problemas olfativos (como sinusite e rinite crônica) ou degenerativos, tiveram bons resultados. Entretanto, aqueles que têm doenças neurodegenerativas costumam acertar menos de 10 dos 20 cheiros. A escolaridade também se mostrou importante: participantes com ensino básico e fundamental tiveram menor desempenho.
A análise dos resultados foi feita por meio de Teoria de Resposta ao Item (TRI), que segundo explica Brandão, é uma ferramenta de estatística que mede a dificuldade dos itens e a capacidade de discriminar os diferentes níveis de habilidades de uma pessoa. É a mesma lógica de avaliação do Enem: errar uma questão considerada fácil faz perder mais pontos do que uma difícil.
“Essa variável é medida pelas respostas que a pessoa dá. Então, usando essas técnicas estatísticas, a gente conseguiu determinar alguns pontos de corte, e ver que o teste é preciso exatamente na faixa das pessoas que estão com desempenho olfativo diminuído”, explica Brandão.
A ideia de fazer o projeto surgiu durante a pandemia, em julho de 2020. “A gente na Universidade de Brasília, em conjunto com a USP de Ribeirão Preto e outro outros 18 centros no país, começamos a estudar quando, como e por que as pessoas perdiam o olfato pela Covid-19. , Em maio de 2020, a Organização Mundial de Saúde caracterizou a perda de olfato como um dos marcadores da doença”, lembra Nakanishi.
Com isso, surgiu a necessidade de saber como medir a eficiência do olfato de forma simples, já que esse não é um teste tão comum na área médica, segundo Nakanishi. “Você mede a visão, a audição. Mas como mede o olfato?”, questiona. O otorrinolaringologista começou a pensar métodos de medição olfativa que fossem mais acessíveis e práticos, e teve contato com a NoAr Brasil
Como funciona o MultiScent-20
O tablet MultiScent-20 mostrou ter eficácia superior à de testes convencionais. Ele é capaz de liberar 20 cheiros através de um jato seco, e, como em um jogo de adivinhação, calculara pontuação de resposta. Para conseguir exalar 20 cheiros diferentes (que vão de banana e canela a pneu), existem dentro de cada tablet 20 cartuchos. Cada um deles pode emitir 100 disparos.
Nakanishi explica que a quantidade de acertos do paciente determina seu grau olfativo. “Uma pessoa que acerta de 15 pra cima está com o olfato normal. Quem acerta de 11 a 14 apresenta hiposmia, que é a redução da função olfativa. 10 acertos ou menos é considerado anosmia funcional – ou seja, funcionalmente você não sente o cheiro e não aprecia a comida”, explica.
O diagnóstico pode chegar diretamente no celular do paciente. “Esses dados vão para a nuvem e geram um laudo. Mandamos o resultado no WhatsApp de forma imediata”. Saber da perda de olfato de forma precoce pode fazer pessoas procurar tratamentos e evitar riscos. Idosos com pouca capacidade de sentir cheiros podem não identificar um vazamento de gás em casa, por exemplo – o que sinaliza a maior necessidade de acompanhamento.
Mais do que isso: ter um acerto abaixo de 10 pode ser um indicativo precoce do possível desenvolvimento de uma doença neurodegenerativa no futuro. Em caso de Parkinson, uma proteína chamada alfa-sinucleína se acumula nos neurônios. O primeiro lugar que ela atinge é o neuroepitélio olfatório. “Então, os sinais precoces já são bem documentados. Em torno de 7 a 10 anos antes de você começar a tremer [em decorrência] do Parkinson, você já perdeu o olfato”.
No Alzheimer, as proteínas TAU e beta amiloide são responsáveis por destruir e degenerar os neurônios. O primeiro local em que essas proteínas se depositam é no nervo do olfato. “Em um caso de pré-demência, em que a pessoa [ainda] não está incapaz e apenas se esquece de algumas coisas, o teste do olfato consegue pegar. Todas as pessoas que têm demência vão tirar menos de 10, isso é um fato. Mas, se a pessoa está com uma doença cognitiva leve, ela também já começa a perder a capacidade olfativa”, explica Nakanishi.
Saber com antecedência sobre perdas olfativas pode prolongar a vida de pacientes. Uma pesquisa da Universidade de Chicago aponta que pessoas com olfato prejudicado têm mais chances de morrer em comparação a quem não tem. “[O estudo] pega uma pessoa que perdeu o olfato e compara com outra que não perdeu, e as segue por 5 anos. O indivíduo sem olfato tem 3.34 vezes mais chances de morrer, porque fica mais deprimido ou poderia estar com demência. Eu vejo no meu consultório; pessoas sem olfato ficam mais ansiosas e deprimidas”.
A perda de olfato pode ser contornada a partir de técnicas como o treinamento olfatório, fisioterapia do olfato. Há também vitaminas específicas para melhorar o sentido. Nakanishi cita o caso de uma paciente com sinusite crônica que fez 7 acertos no tablet. Após o tratamento, conseguiu subir para 17.
Vantagens do dispositivo
Claudia Galvão, que desenvolveu o dispositivo, diz que um dos principais desafios foi fazer com que os 20 cheiros saíssem pelo mesmo local do tablet sem se contaminarem. “Eu vi que tínhamos que fazer um cheiro seco porque precisava ser feito sem carregar [muitas] partículas, para não contaminar a saída [do dispositivo]”, relata.
Uma vez que a liberação de partículas é pequena, pessoas que têm alergia a um determinado alimento ou aroma podem fazer o teste sem desenvolver qualquer reação alérgica. “Hoje em dia você vê até alguns equipamentos que tem no mercado que sai cheiro, mas todos esses cheiros saem molhados. Então, pode contaminar seu nariz ou o ambiente que você está”, diz Galvão. A característica, segundo a CEO, permitiu que a empresa obtivesse a patente mundial do primeiro tablet com cheiro.
Além disso, a quantidade de cheiros emitidos pelo dispositivo não deixam o cérebro confuso ou cansado. Isso pode acontecer quando alguém vai escolher um perfume, por exemplo: depois de sentir poucas fragrâncias, a pessoa desiste, por ter o seu sentido olfativo atrapalhado e não conseguir mais diferenciar os odores. “Com o cheiro digital você consegue cheirar as 20 fragrâncias, sentindo exatamente o cheiro delas. Como não entrou no seu nariz, o seu cérebro não se confunde”, relata Galvão.
O tablet também pode ser usado por pessoas gripadas e que estejam, momentaneamente, com o olfato prejudicado. “O cheiro entra [no nariz] porque o dispositivo vem com uma pressão e uma velocidade padrão. Então, não importa se você está doente, você vai sentir da mesma forma. Não depende da pessoa, depende do aparelho”, explica Galvão.
Atualmente, o dispositivo é oferecido somente para os médicos, mas existe a pretensão de tornar a tecnologia acessível no Sistema Único de Saúde (SUS). Para o futuro, os criadores pretendem usar a tecnologia para aprimorar questões médicas e expandir outros meios, como por exemplo, com óculos 4D em salas de cinema, capazes de emitir os cheiros das cenas dos filmes.