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Por Depoimento A Stefani Sousa; Fotos Reprodução/Instagram; Getty Images


A quarentena, causada pela Covid-19, paralisou a atuação das escolas de forma fisíca e, já há alguns meses, tem aumentado ainda mais os desafios da educação. Se antes, era possível colocar panos quentes nas desigualdades sociais, agora, o reflexo disso é evidente na falta de acesso de muitos estudantes ao direito básico de aprender. Aqui, Elaine Martins, professora de lingua portuguesa e leitura na rede pública há 13 anos, reflete sobre o período.

Professora Elaine Martins (Foto: Acervo Pessoal) — Foto: Glamour
Professora Elaine Martins (Foto: Acervo Pessoal) — Foto: Glamour

"Trabalho com duas realidades muito diferentes. Uma delas, em uma escola pública da rede estadual de São Paulo, onde a maioria dos alunos tem uma certa estrutura em casa e estou conseguindo passar o conteúdo. Já na minha outra escola, da prefeitura de São Paulo, muitos alunos vem da comunidade, não têm internet de qualidade e nós, educadores, não conseguimos acessá-los.

Existe uma grande mobilização dos professores para fazer dar certo, muitos estão atuando para arrecadar cestas básicas, materiais de higiene e distribuir tudo isso. Nas duas escolas, felizmente, existe uma preocupação. Outro dia, no entanto, pelas redes sociais, vi um comentário dizendo que a escola pública está abandonada e eu discordo. Assim como eu, muitos colegas estão dando o sangue e trabalhando até quatro vezes mais. Ninguém está à toa e todo mundo está pensando no que fazer e em como ajudar. É muito triste quando você escuta que o nosso trabalho está jogado às traças.

Quando preparamos o conteúdo, é preciso pensar até na quantidade de dados móveis que o aluno está consumindo ao acessá-lo. Não adianta colocar um negócio extenso para que ele assista e consuma toda a internet de uma única vez. Sou fã das tecnologias, uso vídeo em aula, mas nunca tive que gravar e agora estou fazendo, criei até um canal no YouTube. Conheci também o podcast e estou usando, foi a alternativa que encontrei para que os meus alunos ficassem mais próximos, para que pudessem ouvir a explicação através da minha voz ou até mesmo a leitura de um poema, algo que seja mais tranquilizador.

Professora da rede pública conta desafios de ensinar em meio a pandemia (Foto: Getty Images) — Foto: Glamour
Professora da rede pública conta desafios de ensinar em meio a pandemia (Foto: Getty Images) — Foto: Glamour

Eu não sei onde estão as pessoas que acham que a educação vai fluir normal. Nada vai fluir normal neste período. O que a gente tem feito é tentado passar os materiais e trabalhar algumas habilidades, sobretudo de leitura e escrita. Em uma das escolas, já consegui passar contos e os alunos produziram alguns. Tive 80% de devolução e criamos até um mural virtual que substituiu os cartazes que antes eram colocados nos corredores. Em uma outra turma, estamos lendo O Diário de Anne Frank para pensar a ideia do isolamento. Para eles, criei uma sala de leitura virtual já que muitos são leitores, mas dependem da escola para ter acesso aos livros.

Infelizmente, muitos alunos perderam pai, mãe, avó ou irmão pela Covid-19. Ainda não sabemos se esses alunos voltam à escola. Também sou professora na educação de jovens e adultos (EJA) e para eles montamos apostilas fisícas para que devolvessem com os exercícios feitos. A ideia é que não percam o vínculo com a escola e não desanimem, porque tinham acabado de voltar a uma rotina de estudos.

Já com os meus alunos adolescentes, o número de crises de ansiedade aumentou bastante. Às vezes, alguns me ligam de madrugada, chorando e pedindo para serem acalmados. O que eu faço é buscar alguma coisa para amenizar. Se eu sei que tem alguém da família doente, preciso levar um pouco de conforto. Para alguns, o professor é o amigo que eles têm e, por isso assisti vídeos sobre ansiedade, conversei com psicólogos e pedi dicas sobre como reagir a essas situações. Agora, sugiro exercício de respiração, mando uma música, poesia ou faço a leitura de um texto. A rotina é muito sobre pensar em como você pode ajudar enquanto o mundo está cobrando de você que o conteúdo seja dado.

Não está sendo fácil. Tenho visto as pessoas falando para voltarmos, mas como? Falam que os pais vão voltar a trabalhar e não tem onde deixar os filhos, mas escola não é depósito. É preciso manter distância, mas como fazer isso se nas escolas públicas as salas de aula têm entre 35 e 40 alunos? São muitos contextos, tem alunos que moram em uma casa com quatro pessoas e outros em um cômodo com 20.

Professora da rede pública conta desafios de ensinar em meio a pandemia (Foto: Getty Images) — Foto: Glamour
Professora da rede pública conta desafios de ensinar em meio a pandemia (Foto: Getty Images) — Foto: Glamour

Esse não é tempo de olharmos só pra nossa realidade, mas sim para a segurança de todos. Muitos alunos, moram com os avós e, se algo acontecer, dependendo da idade e do nível de consciência deles, vão se sentir culpados. Quais problemas eu gero na cabeça do adolescente e da criança que perde alguém por causa do vírus e sabe que foi ele o agente transmissor da doença?

A gente não imagina como vai ser essa volta à escola. Neste caso, existe o medo do professor também, que deixam a família em casa. Também entra o fato de que muitas crianças vão pra escola em busca de afeto e é justamente o afeto que a gente não vai poder dar. Eu tenho um aluno do 5º ano, que já conheço há algum tempo, e a mãe dele faleceu vítima do coronavírus. Eu fico pensando: qual será a minha reação quando esse garoto voltar à escola? Será que ele vai voltar? Como vai ser e o que fazer? Acho que quando voltarmos, a primeira coisa é trabalhar o cuidado com as pessoas, é saber como elas estão e no que a gente pode ajudar. Se não houver essa base, você pode dar qualquer conteúdo e ser o melhor professor do mundo, mas mesmo assim não vai atingir o objetivo.

Muitos lares foram destruídos, muitas crianças talvez se percam, adolescentes se revoltem e não é o conteúdo que vai ser importante. Conteúdo a gente recupera, a vida não. Conteúdo você faz um trabalho bem elaborado, chama a galera pra conversar, alia com coisas que eles gostam e isso dá resultado. Eu sou prova disso. Muitas vezes peguei aluno na 8º série e tive que repor conteúdo de outros anos, dá pra fazer. Por mais que se fale tão mal dos professores nesse País, principalmente dos de escola pública, a gente faz. Tem muita gente boa e que só se desenvolveu graças ao trabalho desses professores que todo mundo fala que é ruim. Há 13 anos eu vejo a educação pública rendendo frutos e agora não é diferente. Muito professores estão engajados e passando por cima de todas as dificuldades para apoiar seus alunos."

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