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Ana Maria Magalhães e Leila Diniz (Foto: Divulgação)

Ana Maria Magalhães e Leila Diniz (Foto: Divulgação)

Trazendo um olhar carinhoso sobre as contribuições de Leila Diniz para a cultura brasileira, Já que Ninguém me Tira para Dançar ganhou duas exibições na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na quinta (28) e nesta sexta-feira (29). Roteirista, diretora e produtora do projeto, Ana Maria Magalhães também era uma das melhores amigas de Leila e chegou a relutar a aceitar o convite quando foi abordada pela primeira vez em 1982.

"Achei que seria muito difícil eu ter um distanciamento, o envolvimento era muito grande e também não sabia direito o que eu poderia ou não dizer", conta ela à Marie Claire. Quando decidiu aceitar o convite, passou a receber dicas da amiga em sonhos. Sentir sua presença deu a confiança que precisava. "Uma vez ela me falou num sonho que a edição estava muito longa e precisava cortar. Eu senti essa companhia da Leila", afirma.

Leila foi um ícone pela sua atuação e também pelos seus posicionamentos enquanto mulher na sociedade. Em meio à ditadura militar, escandalizou o conservadorismo ao falar abertamente sobre ter uma vida sexual ativa e ao exibir sua barriga de grávida na praia em uma época em que mulheres gestantes usavam batas na beira mar.

Leila Diniz morreu em junho de 1972 em um acidente de avião enquanto voltava ao Brasil após passagem por um festival de cinema na Austrália. Para Ana, o principal objetivo do filme, que passou por restauração e vem ao mundo às vésperas dos 50 anos da morte da amiga, é apresentar o trabalho de Leila para as novas gerações e resgatar a memória de suas contribuições para a cultura brasileira. 

"Acho que ela deixa muito essa mensagem de afeto. Lembro que recebi um cartão postal dela da Austrália, eu estava morando na casa dela quando ela morreu, em que ela dizia que ‘o mais legal da vida é essa de amor, afeto, carinho. Tem que estar aberto, que pinta isso tudo de uma maneira nova, sempre linda e com maior encanto. Nenhum grilo mesmo, sem medo'. Essas palavras ficaram para mim como um legado do que ela aprendeu da vida", reflete. Confira a entrevista na íntegra:

Cartaz do filme Já que ninguém me tira para dançar (Foto: Divulgação)

Cartaz do filme Já que ninguém me tira para dançar (Foto: Divulgação)

Um projeto de décadas

"Eu fui convidada pelo Centro Cultural Cândido Mendes, aqui do Rio, a dirigir um vídeo sobre a Leila em 1982. Relutei em aceitar pela minha proximidade com a Leila. Achei que seria muito difícil eu ter um distanciamento, o envolvimento era muito grande e também não sabia direito o que eu poderia ou não dizer. Mas o pessoal me disse que a família da Leila confiaria se fosse eu, então achei que deveria aceitar. Fiz o roteiro nas madrugadas, porque eu tinha três filhos pequenos. Começamos a gravar e eles não conseguiram recursos para fazer o vídeo. A equipe já tinha recebido metade do salário e topou terminar de gravar, já que estávamos no meio da gravação das entrevistas. Esse material acabou ficando guardado, na época o vídeo não conversava com o cinema. 

Em 2015 resolvi digitalizá-lo na Cinemateca Brasileira, e lá um restaurador me alertou que o filme precisava ser restaurado, ou iria morrer. Entrei em contato com os diretores para renovar autorizações e também para substituir os filmes, gravados em uma tecnologia muito anterior. Comecei a tratar da questão técnica, mas não pude levar adiante porque não tinha recursos. No ano passado, dei uma entrevista para o Itaú Cultural e falei que meu próximo projeto era a Leila. Eles se interessaram em apoiar e nasceu aí o filme.

Passei o último ano trabalhando nisso, com certa dificuldade, porque grande parte da edição foi feita remotamente, os arquivos também estavam fechados na pandemia e, ao mesmo tempo, eu estava lançando Mangueira em 2 tempos nos cinemas. Foi bem puxado para mim. Mas eu estou muito feliz de terminar esse projeto e colocar no ar, porque a Leila merece. A Leila anda muito esquecida, as novas gerações não sabem quem foi ela. Acho muito importante que a gente preserve a memória dela, por tudo que ela representa para as mulheres e para o cinema brasileiro."

Uma ajudinha de Leila

"Eu escrevia à noite e comecei a sentir que a Leila estava próxima. As janelas batiam, as portas batiam, sentia ventanias. Sentia que ela me fazia companhia e me estimulava, e isso me deu uma certa segurança. Comecei a aprender a ter o discernimento do que era interessante para o público e para a história e o que não interessava porque era particular. E não porque vá esconder algo de alguém, mas porque não tem ressonância na sociedade, são coisas muito particulares. Às vezes sonhava com ela. Uma vez ela me falou num sonho que a edição estava muito longa e precisava cortar. Eu senti essa companhia da Leila, durante anos eu sonhei com ela. Não só por causa do filme, mas vez ou outra ela voltava no meu sonho.

Tenho certeza que era ela, porque meu sonho com ela é recorrente. Nessa época era diferente, ela falava mesmo nos sonhos. Mas o meu sonho com a Leila é sempre que ela está morando em outro lugar e eu me sinto muito rejeitada porque ela não me chamou para visitar o lugar que ela está. Tenho várias modalidades de sonho, sempre dessa mesma maneira. Só que naquela época eu tinha sonhos conversando com ela. Agora, não acho que esteja próxima como ela estava antes, não sinto ela próxima de dialogar com ela. Mas sei que ela me ajudou a fazer esse filme esse ano, tenho certeza disso. O restaurador teve um sonho com a Leila e ela dizia: ‘você precisa me apresentar para a sua filha’. Quando ele chegou para o trabalho na Cinemateca, deram o meu filme da Leila para ele digitalizar. Ele ficou muito impressionado, por isso ele me procurou para falar. Ele foi muito importante."

Leila, uma mulher à frente de seu tempo

"Ela era uma personalidade muito forte, né? Como pessoa, ela era um acontecimento. Eu me lembro que em 1965 - eu tinha 15 anos - eu ia à praia no Castelinho e conhecia as meninas que eram da turma da Leila. Todas elas falavam da Leila, todas. Ela já era uma pessoa muito forte entre as garotas, já tinha essa coisa antes dela estourar, estava começando a fazer novelas. Ela percebia, claro, a força dela, porque depois eu vi uma matéria com ela em que tinha uma frase que eu nunca esqueci, que ela disse assim: ‘Não sei se foi loucura ou coragem minha, mas sempre me expus muito. De certa forma, acho que isso é o que sustenta essa coisa engraçada chamada mito’.

Então, na verdade, ela era uma pessoa muito exuberante, uma personalidade muito sagaz, ela sabia de colocar e sair das situações, sempre sabia o que dizer. Essa exuberância da personalidade dela atraia muitas pessoas também, porque ela era uma pessoa muito amiga, muito afetuosa e tinha uma compreensão das pessoas tão bonita, porque ela não cobrava nada de ninguém. Ela aceitava as pessoas como elas são. Ela via o melhor das pessoas e isso fazia com que você quisesse ser o seu melhor, porque era assim que ela te enxergava e você não queria decepcioná-la. Ela tinha total consciência do que ela era, mas não levava isso à sério. Brincava com isso, era uma pessoa espontânea e simples."

Leila Diniz (Foto: Divulgação)

Leila Diniz (Foto: Divulgação)

Feminista

"Ela não tinha afinidade com o feminismo como movimento, o que ela tinha muito era o direito de igualdade que a mulher tem com homens. Todas nós tínhamos, mas ela tinha isso muito acentuado e desenvolvido, tanto que me ensinou muito a esse respeito. Às vezes eu contava alguma história de um namorado e ela sempre me levava para esse lado da igualdade. Era nessa sintonia que ela funcionava: da igualdade e da aproximação. Não é guerra, é afeto, é paixão, atração, amizade.

E ela era muito amiga de mulheres, isso é algo muito raro. Para mim, isso foi muito importante, porque eu era muito apegada com meu pai e fiquei muito amiga da minha mãe no último ano de vida dela, quando eu tinha 12 anos. Pela primeira vez aprendi que você podia ser muito amiga de uma mulher, e quando a Leila apareceu na minha vida três anos depois eu já estava preparada para receber isso. Foi uma coisa muito legal, porque nós éramos muito cúmplices. Lembro que dividimos um quarto de hotel quando gravamos em Paraty e a Leila acordava muito cedo, ficava cantando, e eu não tinha o hábito de acordar cedo. Mas era tão engraçado o jeito dela, tão alegre, que eu acabei curtindo e levantando na boa, de bom humor e achando bom. Digo que ela ensinava muitas coisas não como uma didata, mas ensinava pelo jeito dela e pela maneira como ela era, quando você começava a ver que era muito melhor encarar a vida da forma que ela encarava."

'O mais legal da vida é o amor'

"Ela tinha essa coisa de alegria, mas ao mesmo tempo era muito sensível. Não é que ela não sentisse as coisas, ela sentia os golpes do destino e das pessoas, mas tinha uma delicadeza no trato disso. Eu ficava muito admirada que nós conseguíamos em certos momentos falar coisas profundas uma para a outra que eu não falaria se fosse para outra amiga e nem ouviria na boa se viesse de outra, porque ela sabia fazer isso e eu aprendi a fazer isso também com ela. Não era uma coisa forçada. E ela não tinha ciúmes, não disputava o amor do outro.

A gente brincava muito, era muito alegre, e mesmo quando aconteciam coisas mais sérias, a gente sempre podia contar com a Leila, ela estava sempre aberta. Acho que ela deixa muito essa mensagem de afeto. Lembro que recebi um cartão postal dela da Austrália, eu estava morando na casa dela quando ela morreu, em que ela dizia que ‘o mais legal da vida é essa de amor, afeto, carinho. Tem que estar aberto que pinta isso tudo de uma maneira nova, sempre linda e com maior encanto. Nenhum grilo mesmo, sem medo.’ Essas palavras ficaram para mim como um legado do que ela aprendeu da vida."

Depoimento do primeiro amor

"Teve um depoimento que foi gravado agora, o do Luiz Eduardo Prado. Ele conheceu a Leila adolescente, foi o primeiro namorado dela, um amor inocente. Ele mora em Paris e é psicanalista, e eu conhecia ele, mas não ligava ele a Leila. Nos encontramos andando de metrô e ele contou umas histórias da Leila, perdi e ele gravou. Alguns depoimentos que foram perdidos ao longo dos anos também, sumiram ou foram levados. Mas acho que a Leila é a Leila, o que sumiu, sumiu. Era para sumir mesmo, não discuto muito não. Eu acho que ela é presente muito nessa coisa da vontade, o que ela acha que é legal ou não. Tem coisas que são difíceis, mas tem coisas que você sente que tem uma barreira, que você está forçando. Não forço, não é para ser, vamos deixar à vontade. O intuito todo é divulgar e preservar a memória dela, porque eu acho que ela ainda tem muito a dizer."

Ana Maria Magalhães (Foto: Vicente de Paulo)

Ana Maria Magalhães (Foto: Vicente de Paulo)

Como seria Leila hoje

"Acho que ela teria o caminho do meio. A questão identitária está muito subdividida, acho que essa coisa não é o caminho. Não é uma guerra, o barato é se unir, viver melhor juntos, a comunidade toda. Homens, mulheres, a comunidade LGBT, brancos, pretos, pobres, ricos… acho que a Leila sempre tinha o barato de unir pessoas. Não vejo muito ela se envolvendo, porque toda a coisa da Leila era a prática mesmo, era a vida. Isso é uma coisa muito dos anos 60. Nós fazíamos as coisas sem muita consciência, não achávamos que estávamos mudando nada, só fazíamos o que achávamos que era melhor para a gente. Era no caminho que se faziam as coisas, e acho que a Leila teria preservado isso. É na sua maneira de ver, nas suas ações e nas suas palavras, não é pregando ou impondo comportamentos. Até falei no filme, acho que ela teria milhões de seguidores, iria escrever, ter programa no YouTube… fazer coisas mais independentes e ter uma atuação muito importante como uma pessoa que tem um pensamento próprio."