Questionado na Justiça, governo do RS defende legislação ambiental

Lei estadual que flexibiliza regras para uso de Áreas de Preservação Permanente está na mira do Supremo e de críticos

Por e — De São Paulo e do Rio


Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin Nelson Jr/SCO/STF

As mudanças em regras ambientais do Rio Grande do Sul feitas antes das enchentes que destruíram o Estado voltaram ao alvo da Justiça na semana passada. A pedido do Partido Verde, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin deu prazo de dez dias para que a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o governo de Eduardo Leite (PSDB) encaminhem informações sobre a lei que flexibilizou regras sobre uso de Áreas de Preservação Permanentes (APPs) para a construção de barragens (Lei Estadual nº 16.111, de 9 de abril de 2024).

A secretária do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Sema), Marjorie Kauffmann, afirmou ao Valor que a lei estadual que flexibilizou regras sobre uso de APPs, sancionada no começo de abril, foi uma proposição da Assembleia Legislativa e que veio após o Estado ter sofrido com estiagens sequenciais. A nova lei altera um artigo do Código Ambiental sancionado em 2020 e permite a avaliação de projetos para fins de reserva de água e produção de alimentos, quando não houver alternativa na propriedade.

“Ao sancionar a lei, o governador inclui um artigo que determina que, dentro dos ritos do licenciamento ambiental, haverá um regramento adicional, que vai tratar da compensação pela intervenção em APP, nos moldes do que já é feito para as outras atividades de intervenção”, afirmou a secretária. Segundo ela, o uso dessas áreas protegidas "já é autorizado para atividades de saneamento, energia e mineração".

Há quatro anos, mudanças nas regras ambientais do Estado já havia virado assunto da Justiça. Uma ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério Público Federal em novembro de 2020 questionava a flexibilização de licenças ambientais que tinham sido aprovadas pela Assembleia Legislativa e sancionadas por Leite.

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Para especialistas, as enchentes ocorridas no ano passado e agora devem abrir novamente o debate no Estado sobre a necessidade de revisão de algumas das alterações.

O professor associado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (IPH) Guilherme Marques é um dos que defendem uma revisão do código ambiental. “A flexibilização do código ambiental facilitou a exploração de algumas áreas do Estado, e parte da sociedade demanda esse tipo de flexibilização, mas ao mesmo tempo não dispõe de mecanismos para o reconhecimento do valor dos serviços ecossistêmicos, como a importância de várzeas e o efeito para o amortecimento de cheias.”

A promotora de Justiça Ana Maria Moreira Marchesan, que coordena o Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público gaúcho, também avalia que a tragédia no Estado deve alimentar uma rediscussão sobre as mudanças. Marchesan participou diretamente da elaboração de uma ação direta de inconstitucionalidade, de 2020 - que ainda continua sem resposta final do STF. “Os argumentos daquela época foram reforçados agora”, diz a promotora.

O texto fazia críticas às formas de licenciamento ambiental instituídas no Estado, estabelecidas pelo novo Código Ambiental (Lei 15.434/2020), sobretudo à licença ambiental por compromisso (LAC), que não existia antes. Na prática, é um tipo de autolicenciamento para algun empreendimentos. A licença é emitida pelo próprio solicitante por meio de um sistema digital da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).

A ação dizia que Estados e municípios podem complementar o regramento da União, “mas não reduzir ou flexibilizar a exigência contida na norma geral federal”. Além disso, alertava que uma demora na decisão de barrar as mudanças legislativas teria o “potencial para causação imediata de danos irreparáveis ou de difícil e custosa reparação”. A ação continua em tramitação no STF, sem ainda uma decisão, diz a promotora.

Entre os pontos questionados na ação de 2020, estão o entendimento de que a lei do Estado “viola o ordenamento constitucional ambiental”, em particular as novas modalidades de licenciamento; questionamentos “sobre [as regras] que delegam a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado o desempenho de competências de órgãos ambientais”; e que “limitam a responsabilização de agentes públicos pela prática de atos culposos no exercício de competências ambientais”.

Ana Maria Marchesan diz ainda que os eventos climáticos extremos ocorridos no Estado em setembro, novembro e, mais fortemente, este mês deveriam ensejar uma revisão em algumas das alterações da lei estadual, mas faz uma ressalva: “As mudanças legais não tiveram tempo para produzir efeitos tão nefastos como os que vimos agora com as enchentes. Seria injusto de minha parte [estabelecer um nexo direto entre a catástrofe e as novas regras]".

O ex-presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) Francisco Milanez, atual conselheiro na instituição, é mais enfático sobre os impactos gerados pelo novo código ambiental. "O governo Eduardo Leite propôs uma transformação total do código que favorece a destruição do meio ambiente. A retirada do conceito de várzea dos rios para o afrouxamento do seu uso, por exemplo, é um problema porque, se não existe conceitualemente, deixa de existir na prática".

Várzeas são as áreas alagadiças ao redor de rios que servem como sistemas naturais de controle de enchentes, auxiliando no processo de absorção da água. Milanez também critica a flexibilização para a Licença Ambiental por Compromisso (LAC). “O Estado não pode delegar ao cidadão uma competência que é sua. O licenciamento é um processo de tutoria do Estado, ele usa toda a inteligência para poupar [o solicitante] e evitar um passivo ambiental que, se acontecer, o Estado será corresponsável".

Oposição ao governo Leite, o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL-RS) acrescenta que, com o autolicenciamento, “os órgãos ambientais se transformam em cartórios para autorização de atividades exploratórias”. “Você diminui a capacidade de avaliação técnica do próprio Estado e entrega todo o planejamento de futuro nas mãos de setores que estrategicamente pensam com uma visão conflitante”, observa.

Kauffmann reconheceu que a LAC é “um voto de confiança” no cidadão e que a modalidade só é possível para 49 atividades de "baixo risco" estabelecidas pelo órgão técnico estadual. Essas condições, contudo, não estão previstas no Código Ambiental. Além disso, a secretária admitiu que um empreendimento de baixo risco pode ter baixo, médio ou alto impacto ambiental.

Ainda sobre a proteção à vegetação nativa gaúcha, os Pampas também são foco de controvérsias. Segundo o MapBiomas, o bioma é o mais degradado do Brasil: Entre 1985 e 2022, essa área teve redução de 30%, quase 3 milhões de hectares. O período inclui os anos da gestão de Leite.

"É um aspecto escandaloso. O que o governo fez para combater isso?", questiona Gomes. "O Pampa que era um bioma propício para a atividade pecuária, o que sempre foi uma virtude do Estado do Rio Grande do Sul, está virando um mar de soja e sendo afetado por atividade de mineração, enquanto a Amazônia, que tem outras características, tem sido desmatada [para a criação de gado]".

O Valor fez esta pergunta à secretária do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul. Kauffmann respondeu que o governo incluiu o conceito de Pampa no novo código, o que não constava no anterior, e que endureceu as penalidades e sanções às infrações ambientais. A secretária admitiu, no entanto, que não houve aplicações de multas relacionadas ao uso indevido do bioma durante a gestão Leite.

Apesar da menção aos Pampas, o Artigo 219 do Código Ambiental de 2020 também dispensa autorização ambiental para certos usos do seu solo. A legislação ainda determina que uma caracterização mais detalhada e aspectos da conservação do bioma seriam estabelecidos por regulamento específico, o que não foi publicado até hoje. A falta do documento atrasa outra área da legislação ambiental gaúcha: a implementação do Código Florestal.

De acordo com Kauffmann, ainda não há previsão para a sua publicação e a Secretaria está “buscando a construção coletiva do documento para evitar novas judicializações”.

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