Polêmica do câmbio tomou conta do Real

O grande sustentáculo da estabilidade foi a mágica da URV


Polêmica do câmbio tomou conta do Real — Foto: Divulgação

Eram 4h30 da madrugada do dia 30 de junho de 1994. A equipe econômica, concentrada desde a véspera na sala de reuniões do quarto andar do prédio do Ministério da Fazenda, em Brasília, pôs finalmente um ponto final na redação da medida provisória que introduziria o real na vida dos brasileiros. As discussões se intensificaram naquelas horas derradeiras. Os temas mais polêmicos giravam em torno da definição das metas monetárias, da taxa de juros e do câmbio.

Após longo debate, concordou-se que a taxa de juros precisava ser alta, mas era impossível acertar o nível ideal sem saber como se comportariam os primeiros índices de preços do real. Foi arbitrada em 8%, em termos nominais. Sobre a política cambial, decidiu-se que a nova moeda começaria com taxa valorizada face ao dólar americano. Edmar Bacha, com toda a experiência que tinha da época do Plano Cruzado, chamou a atenção na reunião para a importância dos juros e do câmbio no reequilíbrio dos preços relativos, crucial para a estabilidade.

Não se conhecia àquela altura os efeitos que a polêmica política de valorização do câmbio causaria, para o bem e para o mal, nos anos à frente. O tema mais discutido na reunião foi a definição das metas monetárias, apoiadas pela maioria com vistas a sinalizar firmeza na condução do plano. A dúvida tinha a ver com algo que era impossível mensurar nos primeiros meses da estabilização. Ou seja, a quantidade de moeda demandada pela população. Havia ali um paradoxo intrínseco, pois quanto mais bem-sucedido o plano, maior a vontade do povo de carregar a moeda nova no bolso. Hoje, isso não teria a menor importância, tendo em vista a preferência generalizada pelas transações digitais. A rigor, já não tinha naquela época, mas causou muito barulho na mídia.

A Medida Provisória do Real, que tomaria o nº 542, foi publicada no “Diário Oficial” daquele 30 de junho - as máquinas da Imprensa Oficial ficaram ligadas toda a noite, à espera do texto - com vigência a partir do dia 1º de julho de 1994. Dela constavam as tais metas monetárias, além de outros dispositivos que não tiveram a menor relevância para a pretendida estabilidade da moeda. Muitos, nunca saíram do papel.

Um deles, o artigo 3º da MP, vinculava a emissão do real às reservas internacionais, em valor equivalente. Desde os tempos em que André Lara Resende se desligara da equipe econômica, em dezembro de 1993, a questão do lastro cambial nos moldes argentinos desaparecera do foco da equipe, mas optou-se por deixar inscrito aquele vínculo para fins de garantir credibilidade à nova moeda.

Um parágrafo daquele artigo mencionava a paridade de um para um entre o real e o dólar, sem entrar em detalhes. A rigor, estava longe de indicar a política cambial que seria implementada pela autoridade monetária, pela qual a paridade funcionaria como um limite para a taxa de venda do BC, enquanto que na ponta da compra de dólares a taxa flutuaria, sempre para baixo, uma espécie de banda informal assimétrica orquestrada por Gustavo Franco, então diretor da área internacional do Banco Central.

Pelo fato de ser o maior vendedor e comprador de divisas do país, o BC manobrou o nível do câmbio de modo a manter o real apreciado por muito tempo. A valorização cambial era consenso na equipe às vésperas do lançamento da nova moeda na suposição de que duraria semanas, talvez alguns meses, nunca anos. Nos primeiros dias de julho, o dólar foi cotado a R$ 0,93. Em 14 de outubro, chegou a R$ 0,827, maior valor do real, para desespero dos exportadores.

Outro ponto da MP que nunca saiu do papel foi o Fundo de Amortização da Dívida. Saudado pelo efeito que teria na redução da dívida pública federal - esta seria trocada em parte por quotas do fundo lastreadas em ações de empresas estatais - acabou por ser abandonado. Não por culpa do presidente Itamar Franco, que sempre se opôs à privatização, mas por desinteresse da própria equipe.

E assim, plena de balangandãs, a MP do Real entrou em vigor. Seria modificada várias vezes antes de virar lei, mas revelou-se uma peça secundária no processo de implementação do plano. O caminho já havia sido definido quatro meses antes, com a criação da URV (Unidade Real de Valor).

O grande sustentáculo da estabilidade foi, de fato, a mágica da URV, baseada na moeda indexada de André Lara Resende, algo que ele havia colocado em texto assinado com Pérsio Arida em 1984. Ao invés de duas moedas em circulação simultânea - a boa e a má -, optou-se por uma moeda virtual que funcionaria apenas como unidade de conta, uma ideia de Bacha, segundo Lara Resende. As pessoas não andavam com URV no bolso, mas todos os preços praticados em cruzeiro real passaram aos poucos a ser referenciados àquela unidade, cujo valor (em cruzeiro real) era fixado diariamente pelo Banco Central com base na evolução da média de três índices de preços.

Se uma URV valesse, por exemplo, CR$ 100,00 hoje, o preço de um saco de arroz de CR$ 250,00 teria o valor equivalente fixado em 2,5 URV. No dia seguinte, para uma URV valendo, por exemplo, CR$ 115, o saco de arroz que tivesse subido para CR$ 288,00 teria preço correspondente de 2,5 URV. Assim, foi introduzida a noção da estabilidade.

A mágica da URV demorou a ser entendida, até mesmo pelo staff do FMI, que nunca acreditou no Plano Real. Muitos não entendem até hoje. A ideia da moeda indexada era justamente a de manter estável a moeda boa, descontaminada da inflação, de modo que as pessoas abandonassem a moeda má e, com isso, a memória inflacionária. No dia 1º de julho de 1994, o cruzeiro real deixou de existir. O processo de distribuição das cédulas e moedas denominadas em real junto aos bancos começara muito antes, em grande operação logística copiada depois pelos europeus na introdução do euro.

Não há dúvida de que a valorização cambial também foi fundamental para dar sustentação ao plano. Em rápidas palavras, a intenção era atacar várias frentes: baratear os preços internos através da importação, de um lado, e com o desestímulo à exportação, de outro, e impulsionar o aumento da produtividade das empresas, além de estabilizar os preços cobrados pelos prestadores de serviço, uma vez que o dólar deixaria de ser atraente. O real, agora, valia mais do que a moeda americana. Tudo isso facilitava a recomposição dos preços relativos, além de segurar a inflação. Mas o prolongamento do câmbio apreciado criou profunda cizânia entre Gustavo Franco e Persio Arida, com custos a vários setores da economia.

Como tudo o mais na vida, o Real resultou de uma série de fatos que conspiraram a favor e que ocorreram muitas vezes de forma impremeditada. O impeachment de Fernando Collor colocou um presidente acidental no Palácio do Planalto, que deixou a equipe econômica fazer o que quisesse. Houve sugestões inapropriadas da parte de Itamar Franco, a maioria relacionada a aumentos dos servidores públicos, mas o medo de comprometer o sucesso do Plano falava mais alto. Sem ele, Fernando Henrique Cardoso talvez não tivesse usufruído de total liberdade para compor a sua equipe e para ser o grande mentor da estabilidade. Sem Itamar, dificilmente Rubens Ricupero teria sido ministro da Fazenda em sucessão a FHC, quando este desincompatibilizou-se para disputar a Presidência da Republica. Sem o envolvimento de Ricupero na divulgação das vantagens do Plano, em linguagem simples e direta, o Real não teria sido tão rapidamente acolhido pela população.

Todo o processo de comunicação do plano foi montado a partir da premissa de que a transparência da informação, dada a complexidade do programa, era peça fundamental para o sucesso da estabilidade. Ricupero falava para o povo, e os economistas do Real falavam para o mercado financeiro e para os empresários através dos formadores de opinião especializados. Cada etapa precisava ser bem explicada, sob pena de não se conseguir avançar com as decisões posteriores. Boa parte da credibilidade na nova moeda foi pavimentada pela estratégia de comunicação.

Obviamente, nem tudo foram flores. Em março de 1995, ocorreu a primeira grande crise causada pela política cambial. Persio Arida, então à frente do BC, já na presidência de Fernando Henrique, saiu do governo. Foi substituído por Gustavo Loyola. Dois anos depois, Gustavo Franco virou presidente do BC. A polêmica em torno do câmbio se arrastou durante todo o primeiro mandato de FHC. Em janeiro de 1999, um colapso definitivo levou ao abandono da política de administração cambial. O real passou a flutuar, sem bandas. Também as crises externas de 1997 e de 1998 colocaram em risco a estabilidade da nova moeda, sem falar nos percalços de ordem pessoal como foi o caso das conversas de Ricupero, captadas por antenas parabólicas, dois meses após o lançamento da nova moeda.

O fato é que o Real não apenas resistiu a tudo, mas fortaleceu-se ao longo do tempo. Ainda bem que aconteceu há 30 anos. Com a deterioração das condições políticas e a disfuncionalidade atual dos Poderes, a estabilização, nos moldes concebidos pelos formuladores do Real, teria sido praticamente impossível nos dias de hoje.

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, formada pela PUC-Rio, é autora do livro “A Real História do Plano Real”, em versão impressa e digital.

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