Um cartório fechado pode não parecer um grande problema perante as 2,4 milhões de pessoas atingidas pela maior enchente já registrada no Rio Grande do Sul, que deixou ainda 10 mil desabrigados. Para quem está em meio ao caos, no entanto, a situação é diferente. Certidões de óbitos, nascimentos, transferências de propriedades, compra e venda de imóveis e vistoria de veículos, a lista de serviços é longa. Os impactos vão desde problemas legais a perdas econômicas.
Ao todo, 60 cartórios foram impedidos de serem acessados devido aos alagamentos; metade deles foram atingidos diretamente pelas chuvas e não puderam funcionar, de acordo com a Associação dos Notários e Registradores do Rio Grande do Sul (Anoreg-RS). O Estado tem 768 unidades. A maioria dos serviços, porém, não foi interrompida graças à digitalização e à computação em nuvem, que permitiram que documentos, recentes e antigos, não se perdessem e que o trabalho fosse retomado mesmo fora das unidades atingidas. “Muitos colegas conseguiram baixar os backups em servidores próprios e atender em outros lugares remotos”, diz Cláudio Nunes Grecco, presidente da Anoreg-RS.
Houve, no entanto, situações em que a informatização não garantiu que negócios fossem fechados. A queda do sistema do Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran/RS) - após o desligamento preventivo do datacenter do Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio Grande do Sul (Procergs), submerso em Porto Alegre - deixou todos os serviços indisponíveis a partir do dia 6 de maio, com efeito cascata para cartórios e revendedoras de veículos.
Como resultado, a maior parte dos veículos vendidos no Estado, mesmo em áreas não alagadas, não puderam ser legalizados, impedindo o emplacamento. “Foram 21 dias sem emplacar um carro. Isso resultou na queda de 75% das vendas”, diz Jefferson Furstenau, presidente do Sindicato dos Concessionários e Distribuidores de Veículos no Estado do Rio Grande do Sul (Sincodiv-RS) e Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores RS (Fenabrave-RS).
Segundo ele, o prejuízo para o setor deve chegar a R$ 1,5 bilhão. A situação começa a se normalizar, mas há dúvidas do que será o normal para o setor após o desastre climático. “Junho está bom, mas sabemos que isso não é a normalidade, porque isso é fruto das indenizações dos seguros”.
O impacto do desastre nos cartórios ajuda a compor o quadro dos prejuízos para os gaúchos. Grecco explica que no vale do Taquari, uma das regiões mais afetadas, há forte presença de atividades econômicas como a suinocultura e a avicultura. Quem não perdeu toda a criação nas enchentes e precisou de liquidez pode ter tido problemas para, por exemplo, registrar documentos relativos ao crédito rural, situação que já havia ocorrido durante a pandemia.
Houve dificuldades como expedição dos registros de óbitos, que receberam tratamento especial durante as enchentes, em acordo com a Justiça. A lei determina que documento seja feito no cartório que atende à região em que houve o óbito. No vale do Taquari, isso não foi possível por algumas vezes. “Quando um cartório não conseguia fazer, o do lado, se tivesse condições fazia, mesmo no local que a lei não determina. Entrávamos em contato com a juíza, ela autorizava e fazíamos. Isso, a própria corregedoria determinou”, diz o presidente da Anoreg-RS.
Para que a população não ficasse descoberta, os cartórios em condições funcionaram em esquema de mutirão. Até o final de junho, por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os cartórios de registro civil do Rio Grande do Sul foram autorizados a emitir certidões de nascimento, casamento - necessárias, por exemplo, para emissão da carteira de identidade - e óbito gratuitamente.