As últimas semanas foram marcadas por alguns eventos no campo econômico que nos lembram da dificuldade que temos, enquanto país, de nos livrar de fantasmas e de erros já cometidos inúmeras vezes no passado. Apenas três exemplos recentes para ilustrar a confusão: 1 - o desentendimento entre Legislativo e Executivo sobre Medida Provisória que revisa o uso de créditos tributários de PIS/Cofins, com devolução de parte da MP pelo presidente do Senado; 2 - o leilão açodado para compra de arroz, que em tese iria suprir uma escassez de oferta por conta da tragédia no Rio Grande do Sul, mas virou um certame com indícios de vícios em seu regramento e suspeitas de má execução; 3 - a recolocação extemporânea da discussão sobre os benefícios da autonomia operacional do Banco Central.
Cada um desses três episódios traz consigo muitos símbolos sobre a dificuldade de superarmos dilemas passados e seguirmos adiante, aprendendo com os erros e concentrando energias em novas pautas, questões que realmente irão endereçar os desafios do futuro e potencialmente colocar nosso país em um nível melhor ao longo das próximas décadas. Irei explorar cada um dos três itens e os símbolos envolvidos neles.
1 – Devolução de Medida Provisória que versa sobre uso de créditos tributários de PIS /Cofins para dedutibilidade fiscal de empresas: independentemente do seu mérito, a forma com que a medida foi encaminhada ao Congresso, sem prévia coordenação do trâmite e do conteúdo com lideranças da Casa, demonstra, uma vez mais, que as medidas fiscais continuam a ser pensadas, majoritariamente, com viés de resultados de curto prazo, visando cobrir os buracos orçamentários de hoje, mas sem consistência intertemporal no conjunto de medidas e alinhamento de incentivos para um regime fiscal mais eficiente e que produza estímulos para aumento de renda e emprego para o país no longo prazo.
Vale lembrar que essa Medida Provisória foi editada para fazer frente à prorrogação da desoneração de folha de pagamento por mais alguns anos – que, segundo comprovam vários estudos científicos, teve pouco ou nenhum efeito sobre a criação de emprego e renda desde a sua criação, e que implica em renúncia fiscal de algumas dezenas de bilhões de reais a cada ano.
2 – Leilão para compra emergencial de arroz para suprir suposta escassez de oferta em virtude das chuvas e alagamentos no Rio Grande do Sul, região que produz boa parte da oferta do grão no país. Mais uma vez, sem entrar no mérito da necessidade do certame, a forma com que o leilão foi desenhado e sua execução levaram a vencedores com pouca ou nenhuma experiência para realizar o trabalho e alta suspeita de favorecimento no pleito. As concessões de serviços públicos já foram muitas vezes fonte de desvios de conduta e de recursos, como apontado em inúmeros escândalos nas últimas décadas.
Entretanto, parecemos não aprender com erros e com as más práticas que tanto já custaram ao nosso país em termos de desvios de recursos, ineficiência alocativa do dinheiro público, superfaturamentos e instabilidade econômica, política e social em função do emaranhado de práticas corruptas desvendado nas últimas décadas. Eventos como esses fazem reacender os sinais de alerta sobre a continuidade de práticas promíscuas entre entes públicos e privados e recolocam algumas sombras do passado em nosso imaginário, gerando nova rodada de insegurança nos agentes econômicos sobre os caminhos que serão seguidos.
3 – Questionamento sobre os benefícios da autonomia operacional do Banco Central. Este tema foi exaustivamente discutido no país ao longo de décadas, com volumoso número de estudos internacionais que sustentam os benefícios de um Banco Central independente, com autonomia operacional para buscar as metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, órgão vinculado ao Executivo, e mandatos de diretores escalonados e não coincidentes com ciclos eleitorais e políticos, cujos nomes são sempre indicados pelo Poder Executivo e aprovados pelo Congresso Nacional.
Bancos Centrais independentes reduzem a probabilidade de interferências políticas na condução monetária ao longo do tempo, garantindo maior independência no uso dos instrumentos monetários e fiscais e com arcabouço bem definido de instrumentos a serem operados (taxa básica de juros, depósitos compulsórios do sistema financeiro e gestão cambial), além de objetivos a serem alcançados (metas intertemporais para inflação em horizonte estabelecidos e máximo emprego compatível com essas metas).
Regimes similares ao atual modelo adotado no Brasil, mundo afora, quando conduzidos de forma consistente e sem alterações de rumo, foram responsáveis por menores níveis de inflação, menor volatilidade de preços e maiores níveis de emprego e renda nas economias que os adotaram. Rediscutir este tema após tantos anos de discussão e amadurecimento do regime parece ser um evento gerador de instabilidade e de incerteza desnecessária sobre algo que deveria ter sido pacificado como mais uma das evoluções institucionais do nosso país, mas parecemos vocacionados a criar marola até nas coisas que funcionam bem.
A resultante desses episódios recentes, conjugados com dúvidas já pré-existentes no campo fiscal (se o Governo terá condição e vontade de cumprir metas estabelecidas, e como o fará) e parafiscal (como o Governo conduzirá algumas estatais e bancos públicos nos próximos anos), é um ambiente econômico mais incerto.
Não por acaso, nossa moeda (Real) voltou a perder valor frente ao dólar, aproximando-se de R$ 5,50, as expectativas de inflação para este e para o próximo ano subiram de forma importante e, como consequência de tudo isto, o Banco Central decidiu, de forma unânime, interromper o ciclo de queda da taxa de juros com a Selic em 10,50% ao ano, nível que certamente está distante do que um país com a economia, preços e contas públicas organizadas poderia produzir.
As consequências dessa instabilidade recente ainda são bastante incertas, mas os sinais de alerta estão dados: mais câmbio, mais inflação e mais juros apenas dificultarão ainda mais a dinâmica da nossa dívida pública, restringirão a velocidade de melhora do fluxo de crédito bancário e no mercado de capitais e também aumentarão os custos das dívidas das empresas públicas e privadas, com piora da perspectiva de emprego, renda e investimentos adiante.
Sempre é tempo de recalcular rota, redefinir estratégias e buscar minimizar ruídos em temas que já deveriam ter sido superados, deixando algumas sombras do nosso passado econômico onde elas realmente devem estar, nos livros de história econômica.
Só assim poderemos gastar energia com o que realmente importa - a construção do futuro econômico do Brasil -, desenhar a estratégia de como nos posicionaremos no mercado de energia limpa, qual será a legislação para uso de tecnologias como a inteligência artificial, como aproveitar da melhor forma a infraestrutura e tecnologia 5G e as que se seguirão, como lidar com as rápidas alterações demográficas do nosso país (riscos e oportunidades) e como enfrentar os eventos climáticos extremos que parecem cada vez mais frequentes mundo afora.
Enfim, há muitos temas complexos para o futuro, e seria um desperdício nos aprisionarmos, enquanto país, novamente em temas e erros já cometidos no passado.
Estevão Scripilliti é diretor da Bradesco Vida e Previdência.
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