Que Papo é Esse, Giu?

Por Giuliana Girardi

Giuliana Girardi é jornalista, repórter do Fantástico e apresentadora do podcast Bichos na Escuta.


Parece até uma coreografia ensaiada e que não muda com o passar dos dias. Primeiro, ele desce os braços, segura as duas barras que vão suspender o carrinho, ajeita o corpo, contrai o abdome para conseguir sustentar melhor o peso e segue.

Quando encontra pelo caminho algo que merece ir para dentro da carroça, ele se agacha, recolhe e despeja por cima de tudo o que já está ali. Se passa por uma rua estreita, só espera pelo barulho que, mais cedo ou mais tarde, sabe que vai ouvir.

Então, quando alguém buzina, ele tem noção do que precisa fazer. Sai procurando o primeiro buraquinho, apenas o suficiente para encaixar a carroça. Estaciona ali e deixa o caminho livre para o motorista apressado que só vai tirar a mão da buzina assim que olhar pelo retrovisor e perceber que ele ficou bem para trás.

Até aí, nenhum problema, nenhum mal-estar. Agora, se tiram fina do cachorro ou xingam o vira-lata, ele não pensa duas vezes. Retruca com o pior palavrão. Grita profundamente para que toda a vizinhança ouça e, principalmente, o motorista, que vai se arrepender no minuto seguinte de ter botado os pés para fora de casa. Mexam com ele, mas não com Tobias.

A colunista Giuliana Girardi escreve sobre a amizade de um homem em situação de rua e seu cachorro — Foto: Unsplash/ Creative Commons
A colunista Giuliana Girardi escreve sobre a amizade de um homem em situação de rua e seu cachorro — Foto: Unsplash/ Creative Commons

Desde que Tobias passou a segui-lo, dois anos atrás, no ponto de descarte dos recicláveis, a vida tomou um rumo diferente. Tirando um ou outro motorista cruel, todas as pessoas que se aproximam chegam agora de um jeito diferente. Puxam conversa, oferecem ajuda, acenam, mesmo que ele esteja do outro lado da rua. Ele sabe que é por causa da presença de Tobias, mas pouco importa.

Assim que começou a trabalhar como carroceiro pelas ruas de São Paulo, logo que foi demitido da lanchonete como chapeiro, vivia para lá e para cá com um sentimento de inadequação que nunca havia experimentado antes. Por mais que se dedicasse, não recebia em troca a atenção que dispensava a qualquer desconhecido.

Ao revirar as lixeiras dos condomínios de luxo procurando por papelão, fazia questão de cumprimentar os seguranças que ficavam impassíveis no sol escaldante ou vento forte, mas nunca era correspondido. Se insistia em quebrar o silêncio e perguntar: “Meu chapa, vou colocar esse papelão na carroça, tudo bem?”, ouvia, no máximo, respostas monossilábicas: “Sim, tá”.

Mas, desde que Tobias passou a acompanhá-lo com seu rabinho inquieto, suas orelhas empinadas e a boca aberta com os lábios superiores levemente arqueados, simulando um sorriso, a recepção era outra. O olhar amendoado, o pelo branco e preto longo e cheio — que ficava levemente ondulado quando Tobias se molhava na chuva — atraiam o olhar de todos e a simpatia dispensada ao cachorro logo era transferida ao carroceiro.

Nos prédios, o “bom dia” não era mais ignorado, e os seguranças emendavam: “Quantos anos ele tem?”, “Será que ele tá com fome?”, “Qual o nome do parceiro?”.

"Depois que Tobias surgiu, o medo de ficar na praça deserta durante toda uma madrugada foi desaparecendo" — Foto: Unsplash/ Creative Commons
"Depois que Tobias surgiu, o medo de ficar na praça deserta durante toda uma madrugada foi desaparecendo" — Foto: Unsplash/ Creative Commons

A abordagem rápida, mas sempre amigável, devolvia um bem-estar que o carroceiro só vivenciou nos tempos em que ficou atrás do balcão da lanchonete preparando sanduíches para clientes famintos. Logo depois da primeira mordida, ele sabia que ganharia uma boa gorjeta assim que o lanche chegasse ao fim. Antes, viriam os elogios efusivos que ajudariam a aplacar o desgosto por mais um dia de atraso no pagamento.

Mas nada, nada do que andava acontecendo de bom, a partir da chegada de Tobias, podia superar o momento em que eles se preparavam para descansar. A barraca montada bem no centro de uma praça, no gramado, era pequena.

Nos dias frios, nunca ficava quente, apesar do reforço no cobertor. Tobias se aconchegava perto da sua barriga e encostava as patas bem perto das suas pernas. Praticamente não se movimentava a noite toda. Quando isso acontecia, ele sabia que o dia havia sido cansativo, com pouca parada para descanso.

A cada quarteirão percorrido, ele gostava de contar mentalmente o número. No fim, tinha ideia do trajeto completo. Se ajeitava no colchão e dizia para Tobias o saldo do dia: “Dez quilômetros”, “Quinze quilômetros”, “Vinte, Tobias, hoje exageramos”. Em dias assim, seu sono também era pesado.

Depois que Tobias surgiu, o medo de ficar na praça deserta durante toda uma madrugada foi desaparecendo. Ninguém nunca mais chegou perto de sua carroça e o ameaçou, ninguém nunca mais o ofendeu brutalmente, ninguém nunca mais atravessou a rua apressadamente para fugir de sua abordagem.

Tobias se transformou no seu maior amuleto e no amigo fiel que ele sempre desejou ter. Aquele que não era da mesma espécie que a sua, que não se expressava com palavras, mas conseguia através do olhar se comunicar com ele como uma pessoa jamais conseguiu. Aquele que fez muita gente ter interesse em perguntar seu nome.

O carroceiro enchia a boca e dizia calmamente para que todos compreendessem logo: “Me chamo João e esse é meu grande companheiro, Tobias”.

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