etica_em_homeopatia

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2 Ética emhomeopatia São Paulo, 2023

3 Este livro representa uma contribuição do CREMESP para esclarecimento da comunidade médica sobre aspectos relevantes da história e eticidade da homeopatia como sistema terapêutico integrado à profissão médica. Em dez capítulos, escritos por especialistas com ampla vivência profissional em homeopatia, desvela pontos frequentemente ignorados ou que são objeto de desinformação sobre a terapêutica. São abordados temas que conjugam a eticidade da prática homeopática com seus conceitos fundamentais, prerrogativas e deveres profissionais, ensino, pesquisa clínica, relação com outros médicos e aplicação em saúde pública e medicina preventiva. A homeopatia é mais um instrumento terapêutico a serviço da profissão médica, que centra na singularidade do ser humano doente suas ações clínicas, preventivas e curativas, para benefício da população brasileira.

4 CAT – Central de Atendimento Telefônico Tel. (11) 4349-9900 Atendimento na sede: rua Frei Caneca, 1.282 (das 9h às 18h) E-mail: [email protected] Ética emHomeopatia Publicação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo rua Frei Caneca, 1282, Consolação – São Paulo/SP CEP 01307-002- Centro Tel. (11) 4349-9900 – www.cremesp.org.br Pesidente do Cremesp Irene Abramovich Coordenador da Assessoria de Comunicação Wagmar Barbosa de Souza Conselheira responsável pela Câmara Técnica de Homeopatia Maria Alice Saccani Scardoelli Coordenador da Câmara Técnica de Homeopatia Flávio José Dantas de Oliveira Edição e Revisão Júlia Remer Diagramação Vinicius Martins Gloto

5 FICHA CATALOGRÁFICA Ética em homeopatia. / Organizado pela Câmara Técnica de Homeopatia. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Câmara Técnica de Homeopatia, 2023. 184p. ISBN 978-65-88267-05-9 Vários autores colaboradores 1. Ética médica 2. Homeopatia I. Câmara Técnica de Homeopatia (Org). II. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo III. Título NLM W50:WB930

6 A homeopatia é uma área especializada do conhecimento médico, praticada entre nós há quase dois séculos, que tem sido progressivamente exposta e pesquisada nos meios acadêmicos. O Brasil é um dos maiores produtores do conhecimento médico-científico, ocupando posição de destaque no cenário mundial a publicação de artigos técnicos em homeopatia por cientistas brasileiros. Tal fato pode ser decorrência do seu reconhecimento como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina, em 1980, com criação de movimentos internos para sua difusão e investigação em escolas médicas e ambientes acadêmicos. A homeopatia é uma área distinta na terapêutica médica que se vale de medicamentos preparados conforme farmacotécnica própria, oficialmente aprovada, e aplicados segundo um princípio de cura enunciado há mais de dois mil anos por Hipócrates. De acordo com o relatório Demografia Médica no Brasil (2023), a homeopatia ocupa o 33º lugar em número de especialistas, entre as 55 especialidades, contando com 2.973 médicos certificados. A este número, devem ser acrescidos outros médicos que conhecem e utilizam a homeopatia em suas outras especialidades, pois boa parte dos médicos especialistas em homeopatia também têm outra especialidade paralela: 31% são qualificados em Pediatria, 20% em Clínica Médica, 12% em Acupuntura e 9% em Medicina de Família e Comunidade, entre outras. Esta obra é fruto de um trabalho coletivo da Câmara Técnica de Homeopatia do CREMESP, que durante um ano se dedicou à sua elaboração, com discussão dos tópicos e prévia revisão conjunta dos textos elaborados por membros da Câmara Técnica ou convidados. É oportuna e de utilidade pública a sua divulgação para todos os médicos que ainda não a conhecem, pois dialoga, em diversas passagens, com as necessidades e expectativas dos profissionais médicos, independentemente de sua área de especialização ou de atuação. APRESENTAÇÃO

7 Irene Abramovich Presidente do CREMESP Maria Alice Saccani Scardoelli Conselheira Responsável pela Câmara Técnica de Homeopatia do CREMESP Com a presente publicação, o CREMESP traz à luz informações sobre aspectos históricos, epistemológicos, científicos e éticos da especialidade de homeopatia, com informações que seguramente reduzirão o desconhecimento da comunidade médica sobre importantes tópicos da especialidade. São abordados, com especial foco em nossa realidade, temas que refletem a inserção da homeopatia no sistema público de saúde (tanto na atenção à saúde como prevenção de doenças), interações e colaborações com outros profissionais médicos, ensino da ética médica, pesquisa em seres humanos, direitos e deveres do médico em geral e, em particular, do médico que exerce a prática homeopática. Estes temas são permeados pela singular proposta de relação médico paciente estabelecida no âmbito da especialidade, com ênfase na ética do cuidado responsável que preside os atos médicos em qualquer especialidade médica.

8 Flávio Dantas (organizador) Médico especialista em Homeopatia e Advogado. Mestre em Administração (EAESP/FGV), Doutor em Ciências (UNIFESP), Livre-Docente em Clínica Homeopática (UNIRIO) e Pós-Doutorado (Royal London Homeopathic Hospital). Foi Professor Titular de Homeopatia da Universidade Federal de Uberlândia e Visitante na Disciplina de Clínica Médica da EPM/UNIFESP. Marcelo Pustiglione Médico especialista em Homeopatia e Medicina do Trabalho. Livre-Docente em Clínica Homeopática (UNIRIO). Foi Professor Regente da Disciplina Estudos Avançados do Organon” - Universidades Moderna de Lisboa e Fernando Pessoa. Autor de livros na área da Homeopatia. Professor convidado e preceptor na Disciplina de Medicina do Trabalho da FMUSP. Paulo Rosenbaum Médico com especialização em Homeopatia e escritor. Mestre em Medicina Preventiva (USP) e Doutor em Ciências (USP). Pós- -doutor (FMUSP). Pesquisador associado do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Autor de sete livros na área médica. Criador do Blog “Conto de Notícia”, publicado regularmente no Jornal "O Estado de São Paulo" SOBRE OS AUTORES

9 Plínio José Cavalcante Monteiro Médico pediatra e homeopata, advogado, professor e sommelier. Mestre em Ensino em Ciências da Saúde (UNIFESP) e Doutor em Bioética (UnB). Professor de Ética Médica e de Bioética na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e atual coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Getúlio Vargas (CEP/HUGV). Renata Lemonica Médica (EPM/UNIFESP) com especialização em Homeopatia (Instituto Hahnemanniano George Galvão). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado de São Paulo/UNESP (Botucatu) e Doutoranda em Saúde Coletiva (UNESP/Botucatu). Responsável pelo Serviço de Acupuntura e Homeopatia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu. Câmara Técnica de Homeopatia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo Conselheira Responsável Maria Alice Saccani Scardoelli Coordenador Flávio Dantas Membros Ariovaldo Ribeiro Filho Flávio Dantas Francisco Carlos Quevedo Marcelo Pustiglione Paulo Rosenbaum Renata Lemonica Rubens Dolce Filho Sérgio Eiji Furuta Ubiratan Cardinalli Adler

10 Apresentação Irene Abramovich e Maria Alice Saccani Scardoelli Capítulo 1: A Homeopatia como conhecimento especializado da medicina: fundamentos históricos, conceituais e éticos Flávio Dantas Capítulo 2: Homeopatia, novíssima medicina e ethos do cuidado Paulo Rosenbaum Capítulo 3: Homeopatia, racionalidade médica e eticidade: da clínica à pesquisa Flávio Dantas Capítulo 4: Desinformação e deformação no ensino médico: a homeopatia no contexto da farmacologia médica Flávio Dantas Capítulo 5: Relação entre médicos homeopatas e nãohomeopatas: uma história de enfrentamentos Marcelo Pustiglione Capítulo 6: Ética e ensino da homeopatia Plínio José Cavalcante Monteiro Capítulo 7: Ética e pesquisa em homeopatia: Ensaios patogenéticos homeopáticos Flávio Dantas SUMÁRIO

11 Capítulo 8: Ética do cuidado responsável e homeopatia em saúde pública Renata Lemonica Capítulo 9: A ética do sujeito, homeopatia e a medicina preventiva Paulo Rosenbaum Capítulo 10: Prerrogativas e deveres do médico especialista em homeopatia: abordagem ético-legal Flávio Dantas

12 A HOMEOPATIA COMO CONHECIMENTO ESPECIALIZADO DA MEDICINA: Fundamentos históricos, conceituais e éticos Flávio Dantas Capítulo 1 Destaques  A homeopatia é um subsistema terapêutico da Medicina que se vale do princípio dos semelhantes para prescrição de medicamentos preparados segundo farmacotécnica própria e capazes de provocar, em seres humanos aparentemente saudáveis, sintomas ou sinais similares aos apresentados pelos doentes  O médico com formação especializada em homeopatia usa todos os conhecimentos válidos ao seu alcance para beneficiar os doentes, de modo seguro, e, conforme a indicação para o caso, valese preferencialmente da terapêutica homeopática adequadamente prescrita, conforme o princípio da semelhança  O binômio doente-doença é inseparável e o médico homeopata busca explicar a doença e compreender o doente, integrando o conhecimento médico-científico (generalizador) com a arte da terapêutica (individualizadora)  O conhecimento homeopático, e suas práticas, têm se aprimorado ao longo do tempo, cabendo a cada médico exercer sua autonomia na adoção da melhor estratégia para um tratamento mais efetivo e seguro do paciente  As condutas médicas na homeopatia podem variar, indo desde a prescrição de medicamento único até a prescrição de dois ou mais medicamentos, isoladamente ou combinados numa fórmula composta

13  Desde seu nascimento e posterior desenvolvimento, é sólido o vínculo ético da homeopatia com a boa prática da Medicina em benefício dos doentes e da coletividade  A incorporação racional e organizada da homeopatia no Serviço Único de Saúde pode contribuir para o aumento da resolutividade e melhoria do atendimento humanizado aos seus usuários INTRODUÇÃO A Medicina é uma ciência da incerteza e uma arte da probabilidade, ensinou o professor de clínica médica William Osler (1849-1919). Há muito que a Medicina é vista como uma ciência aplicada, e sua prática uma arte baseada em ciência. Ela é exercida por seres humanos que cuidam de seus semelhantes. Para o Direito, os seres humanos são iguais entre si. Na Medicina, levando em conta a dimensão biopsicossocial dos indivíduos, cada ser humano é, ao mesmo tempo, semelhante a outros seres humanos e diferente dos demais, preservando sempre sua individualidade. Ao aplicar os conhecimentos técnicos, os médicos podem se valer de orientações padronizadas (protocolos), indicadas para um conjunto de casos similares, ou adotar condutas individualizantes e ajustadas a cada paciente, tanto em relação às condutas diagnósticas como terapêuticas, quanto ao diagnóstico como tratamento. Não há doença humana sem seu hospedeiro, ou seja, o indivíduo que a apresenta. As doenças podem ser semelhantes, mas os pacientes serão sempre únicos, exigindo uma atenção especial aos seus sintomas e concepções existenciais. A Medicina é, pois, uma ciência aplicada que se torna arte ao considerar cada ser humano em sua especificidade, buscando tanto explicar a doença como compreender o doente que a apresenta. Em suas decisões tomadas com autonomia — e compartilhadas com o paciente — o médico competente deve ponderar o conhecimento científico, os valores do paciente e usar sua experiência profissional, num esforço analítico e sintético que integre ética e ciência em benefício do próximo e da coletividade.

14 Além da promoção da saúde, o bom médico deve conhecer as doenças em toda sua extensão, desde a etiologia, mecanismos de agressão e defesa do organismo, diagnóstico, prognóstico e tratamento, sem esquecer da prevenção. O diagnóstico, além da anamnese e exame físico, pode exigir a realização de exames complementares, que deverão ser solicitados e interpretados pelo médico, em conjunto com o quadro clínico do paciente. Ao tomar decisões terapêuticas, deve ser priorizado, em alguns casos, o combate direto ao agente agressor, enquanto em outros casos os esforços podem ser concentrados na ampliação da capacidade de defesa do organismo, ou, por fim associar as duas estratégias de enfrentamento terapêutico das doenças. Para tanto, é necessário que existam instrumentos que possibilitem a concretização de cada uma destas estratégias, valendo lembrar, também, que cada organismo reage de acordo com suas peculiaridades. Em outras situações, pode ser melhor não fazer nada e deixar que o próprio organismo dirija sua recuperação, apoiado em hábitos saudáveis de vida, como já havia ensinado Hipócrates ( vis medicatrix naturae). Fazer o bem sem prejudicar, ou se possível com o mínimo de dano acessório, é a bússola ética de todo profissional médico, clínico ou cirurgião, inspirado em preceitos milenares que estão no berço da Medicina. A prática médica deve ser racional, embasada em provas de que os seus procedimentos, adequadamente indicados, trazem mais benefícios do que prejuízos. Todo procedimento médico, portanto, deve ser testável, constituindo a Medicina um corpo de conhecimento dinâmico e evolutivo. Procedimentos que eram comumente adotados por médicos numa determinada época podem ser substituídos, após avaliação criteriosa dos seus resultados, e novos conhecimentos ou tecnologias têm sido incorporados ao longo do tempo. Há uma saudável competição e vitalidade interna na Medicina, que a obriga a rever constantemente seus recursos e instrumentos de intervenção. Necessariamente, deve ser ponderado o balanço risco-benefício de cada intervenção médica, associado à sua eficiência, antes de qualquer indicação para uso individual ou coletivo. A conduta médica, além de racional, deve também ser prudente, voltada para maximizar o benefício e minimizar os eventuais efeitos adversos de alguns procedimentos médicos.

15 A HOMEOPATIA E SUA INSERÇÃO NA MEDICINA “Escolha de preferência um médico que jamais se mostre grosseiro, que nunca se irrite, salvo à vista de uma injustiça; que não desdenhe de pessoa alguma, salvo dos lisonjeadores; que tenha apenas poucos amigos, mas amigos leais; que deixe aos que sofrem a liberdade de se lastimarem; que jamais emita opinião semmadura reflexão; que prescreva poucos medicamentos, a maioria das vezes um único, em seu estado natural; que se mantém em seu canto até ser procurado; que não dissimule o mérito de seus confrades e não faça auto-elogio; enfim, um amigo da ordem, do sossego e da beneficência. P.S: “Uma palavra mais ! Antes de escolher, observe como ele se comporta com os doentes pobres, e se ele se ocupa em casa, sem ser visto, com algum trabalho útil ! “ Parágrafo final de carta escrita por Hahnemann, em 1795, como resposta a paciente que havia se mudado e pediu orientações sobre a escolha de um médico para sua família A homeopatia — por motivos históricos, técnicos, científicos e éticos — é parte da Medicina desde o seu nascimento, dela não podendo ou devendo se desligar, sob risco de prejuízo para o sistema médico e para a humanidade. Foi criada em 1796 por um médico alemão, Samuel Hahnemann, inconformado com a desarrazoabilidade das teorias ou doutrinas médicas vigentes. Estas impunham tratamentos médicos desumanos e perigosos, como sangrias e ingestão de substâncias tóxicas, como mercúrio e arsênico, para aumentar indiscriminadamente as eliminações do organismo ou retirar as toxinas internas, esperando, assim, purificar o organismo das impurezas que o contaminavam. Com tantas eliminações provocadas artificialmente, às vezes até com sangrias diárias de mais de dois litros, era comum o óbito dos pacientes. Era, também, recorrente a afirmação médica de que os pacientes morreram curados, pois puderam eliminar ao máximo suas impurezas internas, tendo sido feito o melhor para eles. O fundador da homeopatia combateu duramente os abusos e excessos de tratamentos baseados em especulações teóricas, aplicados como panaceia, sendo a sangria o exemplo mais significativo.

16 Para estes tratamentos sem base explicativa sólida, foi criada a denominação alopatia (alos significa outro), ao passo que os tratamentos embasados no princípio hipocrático dos contrários foram, por ele, englobados na enantiopatia (enantios = contrário). Hahnemann cunhou a designação “homeopatia” para o tratamento apoiado no uso do princípio hipocrático dos semelhantes (homeos, de semelhante). A homeopatia nasceu em oposição à doutrina e práticas terapêuticas nocivas de sua época, em particular daquelas ditas alopáticas. Não há, nos escritos de Hahnemann, críticas severas à utilização de medicamentos cujas prescrições estivessem racionalmente embasadas no princípio hipocrático dos contrários, como a quina para tratamento da malária. Tais medicamentos são hoje dominantes e compõem o formulário terapêutico médico, devendo ser adequadamente indicados e prescritos por qualquer médico. Usados sem abuso, e de modo racional, estes fármacos — assim como os medicamentos homeopáticos — são indispensáveis para uma boa prática clínica na assistência aos doentes. Para Hahnemann, no parágrafo inaugural da sua obra diretora — o Organon da Arte de Curar — a única e mais elevada missão do médico é restabelecer a saúde dos doentes, ou sua cura, emendando a seguir que o restabelecimento deve ser feito de modo rápido, suave e duradouro . Para ele, é atribuição do médico eliminar e destruir toda a doença pelo caminho mais curto, mais seguro e menos prejudicial, embasado em princípios de fácil compreensão. No prefácio, chamou a atenção para uma Medicina exercida com simplicidade, em benefício do próximo, e não como negócio que manteria o doente crônico às custas de “constantes enfraquecimentos e martírios do doente debilitado e já bastante sofredor”, como eram as condutas da dominante alopatia em sua época. Recomendou que o médico sensato deve afastar todos os fatores que possam ter provocado ou continuem a manter os sintomas que afetam o paciente, ou seja, deve remover as causas. Em suas raízes, é evidente o compromisso ético da homeopatia com o respeito à dignidade do ser humano no tratamento de suas enfermidades, buscando fazer o bem sem prejudicar, em linha com o aforisma hipocrático primum non nocere. A Medicina pode ser concebida como um sistema aberto, integrado por vários subsistemas com características especializadas, que visam promover 2

17 a saúde, prevenir, diagnosticar e tratar adequadamente as doenças que afligem o ser humano, ou aliviar o seu sofrimento quando as possibilidades de cura são longínquas. Pode ser comparada a um longo rio, caudaloso, que se alimenta de vários afluentes, e deságua no oceano após cumprir sua missão: vitalizar as áreas ao longo das quais se desloca e oferecer aos seres humanos um bem de valor intangível. A homeopatia é um subsistema terapêutico da Medicina que se vale do princípio dos semelhantes para prescrição de medicamentos preparados segundo farmacotécnica própria e capazes de provocar, em seres humanos aparentemente saudáveis, sintomas ou sinais similares aos apresentados pelos doentes. Como as substâncias são experimentadas em seres humanos (ou foram por eles utilizadas em situações não-experimentais, como efeitos colaterais durante o tratamento ou envenenamentos), eles podem expressar verbalmente, com riqueza de detalhes, as sensações, ideações, alterações no funcionamento físico e mental ou outras mudanças mais sutis, ao lado de sintomas e sinais que serão levados em consideração para a prescrição do medicamento mais semelhante aos sintomas apresentados pelo paciente. Embora não tenha inovado em relação ao diagnóstico nosológico, ou na descoberta de novas etiologias para as doenças existentes, a homeopatia utiliza o conhecimento da semiologia médica e do diagnóstico clínico-nosológico para decidir sobre a escolha do medicamento mais ajustado ao caso, ou sobre a indicação, ou não, de uso da homeopatia para o tratamento do doente. Faz parte de sua rotina diagnosticar a doença e identificar suas causas, para que possa eliminá-las e orientar os pacientes para evitá-las no futuro. Utiliza sempre o conhecimento clínico adquirido com o estudo da patologia médica e semiologia clínica, independentes do conhecimento terapêutico, sendo, portanto, uma prerrogativa dos profissionais de saúde humana com competência para diagnosticar e prescrever medicamentos (médicos e dentistas). Assim como a cirurgia geral — subsistema preponderantemente terapêutico que se subdivide em diversos ramos conforme a área específica de atuação médica — a homeopatia também pode ser praticada de diferentes formas, utilizando técnicas variadas, cabendo ao médico a adoção daquela que entender mais apropriada, de acordo com seus conhecimentos, habilidades, valores e tirocínio. Na área cirúrgica, o médico se vale de

18 conhecimentos clínicos e diagnósticos antes de decidir, ou não, pelo procedimento cirúrgico mais apropriado, para o qual foi devidamente capacitado. Similarmente, na homeopatia há necessidade de aplicação destes mesmos conhecimentos médicos para a tomada de decisão sobre a indicação, ou não, da homeopatia para o caso do paciente que busca atendimento homeopático. Embora todo médico legalmente habilitado possa praticar atos cirúrgicos, simples ou complexos, é conveniente que domine as habilidades e técnicas apropriadas para realizar tais procedimentos. Os resultados obtidos em atos cirúrgicos, ou em tratamentos homeopáticos, são muito dependentes da perícia do profissional responsável pelo cuidado, pois o tratamento é individualizado e dirigido para a solução do problema particular do paciente, sendo as duas terapêuticas consideradas como operadores-dependentes, com implicações para o seu exercício e para a pesquisa médica. COMPETÊNCIAS DO MÉDICO HOMEOPATA Ao criar a homeopatia, Hahnemann claramente a inseriu no campo da Medicina, apenas aceitando médicos como seus aprendizes. Dentro da Medicina, porém, exigiu condutas sensatas e prudentes dos médicos, fazendo valer a máxima hipocrática do primum non nocere na adoção de medidas terapêuticas que visavam à melhora do doente. Do ponto de vista etiológico, Hahnemann defendeu — como todo médico sensato — a necessidade de conhecer os pormenores acerca da causa mais provável da doença aguda, assim como os momentos mais significativos de toda a história clínica da doença crônica (§3). Mais adiante, recomendou que o médico sensato deve afastar todos os fatores que possam ter provocado ou continuem a manter os sintomas ou sinais mórbidos que estão afetando o paciente (§7). Os sintomas traduziam externamente o ataque à força vital e geravam sofrimento, sendo a remoção ou atenuação da totalidade sintomática um objetivo a ser atentamente verificado. Para ele, a totalidade dos sintomas forneceria a pista para determinar o medicamento homeopático mais apropriado e, em especial, deveriam ser selecionados os sintomas e sinais mais evidentes, singulares, incomuns e próprios do caso específico do paciente (§153).

19 A prática homeopática correta impõe, a partir dos sintomas e sinais apresentados pelo doente, o estabelecimento de um duplo diagnóstico. O diagnóstico nosológico é, primeiramente, realizado com base nos sintomas e sinais comuns ou patognomônicos das doenças, com eventual apoio de exames complementares. Ciente dos sintomas comuns, o médico homeopata deve fazer uma investigação artesanal e meticulosa para descobrir as peculiaridades e modalidades reativas de cada doente ao fazer a sua doença. Este é o diagnóstico terapêutico, resultante do conhecimento comparativo dos sintomas comuns ou ordinários que integram a doença, e dos incomuns ou extraordinários que denunciam a singularidade do doente. Neste sentido, a prescrição homeopática reflete, na prática clínica, a aplicação do princípio tantas vezes repetido nos livros e textos de Medicina de que cada doente deve ser avaliado dentro de sua maneira própria de adoecer. Daí decorre a correta prática médica da homeopatia, como terapêutica medicamentosa, que impõe tecnicamente o estabelecimento de um diagnóstico etiológico e clínico para todo paciente em que se pretende instituir um tratamento homeopático. Este entendimento foi referendado em recente consenso dos médicos homeopatas brasileiros, em que 96% concordaram ser o diagnóstico clínico importante para a prescrição terapêutica do médico homeopata . As competências requeridas do médico especialista em homeopatia, portanto, devem traduzir esta dualidade. Há muito tempo estas competências vêm sendo discutidas na comunidade homeopática, em associação, inclusive, com questões éticas relacionadas ao seu exercício inapropriado . Em 1991, durante o III SINAPIH (Simpósio Nacional – e Encontro Internacional – de Pesquisas Institucionais em Homeopatia), advogou-se a necessidade de definir as competências básicas do médico homeopata para o desenvolvimento dos currículos de cursos de especialização e elaboração das provas de qualificação de especialistas em homeopatia pela Associação Médica Homeopática Brasileira . Estas competências estão sumarizadas no quadro abaixo, espelhadas em propostas do American Board of Internal Medicine, às quais foram agregadas competências homeopáticas básicas.

20 Quadro 1. Competências clínicas gerais e competências homeopáticas básicas Em estudo exploratório para obtenção de consenso, com a participação de 26 docentes na área de homeopatia, formulou-se uma matriz de competências para o ensino da homeopatia na graduação médica. Foram identificadas cinco competências na área cognitiva e duas na área de habilidades como, por exemplo, entender o paciente na sua totalidade COMPETÊNCIAS CLÍNICAS -Conhecimento e compreensão da situação clínica do paciente -Habilidades clínicas de coleta e interpretação de dados -Habilidades de comunicação interpessoal -Habilidades técnicas na investigação e tratamento dos doentes -Capacidade de julgamento clínico e solução de problemas combinando os conhecimentos, habilidades e atitudes acima descritos ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos problemas clínicos de um paciente específico. -Reconhecimento dos sintomas peculiares, singulares, extraordinários ou característicos do doente em adição aos sintomas comuns e patognomônicos da doença -Seleção apropriada da totalidade sintomática informativa do medicamento homeopático mais semelhante à situação atual do paciente -Conhecimento dos sintomas integrantes da patogenesia dos diversos medicamentos homeopáticos, em especial daqueles mais utilizados na prática clínica ou que são mais indicados em problemas de saúde que podem ser curados ou prevenidos, de significativa morbidade, elevada incidência ou prevalência e que têm uma resposta insatisfatória através do tratamento convencional. -Julgamento das várias possibilidades clínicas subsequentes à instalação da terapêutica homeopática num certo paciente, implicando em decisões concernentes à continuidade ou não da administração do medicamento, mudança do medicamento, conduta expectante, descontinuidade do tratamento homeopático ou associação com outras terapêuticas médicas, entre outras. -Decisão referente à indicação ou não da terapêutica homeopática no tratamento de cada doente. -Orientação dos pacientes em relação a cuidados gerais de saúde, desenvo1vimento da capacidade de auto-observação e uso correto das medicamentos homeopáticos prescritos COMPETÊNCIAS HOMEOPÁTICAS

21 sintomática e singularidade individual, realizar anamnese homeopática desenvolvendo abordagem mais humanística e empática, e saber analisar criticamente artigos científicos homeopáticos . O bommédico deve ser dotado de atributos que incluam, além de conhecimento e habilidades técnicas ou psicomotoras, uma adequada capacidade de comunicação humana com pessoas em processo de sofrimento. O médico deve saber criar e manter relações de empatia, confiança e respeito mútuos, em todas as etapas do seu trabalho clínico, a fim de criar um ambiente adequado e ajudar o paciente a revelar, do modo mais natural possível, suas queixas, conflitos e segredos íntimos . Cabe a cada profissional buscar continuadamente o seu aprimoramento técnico e humano, em linha com suas concepções, valores e objetivos de vida, para que atuem como médicos eticamente comprometidos com seus pacientes e capazes de compreendê-los, enquanto tentam explicar suas doenças. Ao focar sua atuação no tratamento individualizado e compassivo dos doentes, o médico homeopata visa tratar o doente com sua(s) doença(s), integrando o conhecimento das doenças com a ciência médica (generalizadora) e a arte da terapêutica (individualizadora). Como médico que acrescentou ao seu conhecimento formal de Medicina um conhecimento especializado da homeopatia, poderá decidir sobre a prescrição de tratamentos fora da homeopatia e que sejam do seu domínio, ou encaminhar para outros especialistas, caso seja necessária a complementação de cuidados ao paciente ou não esteja indicada a homeopatia. O médico homeopata, em síntese, se vale de todos os conhecimentos válidos ao seu alcance para beneficiar de forma digna e humanitária os doentes e, conforme a indicação para o caso, vale-se preferencialmente da terapêutica homeopática adequadamente prescrita segundo o princípio da semelhança . Deve fazer uso do seu tirocínio e de sua autonomia para indicar o que entende ser o recurso terapêutico mais útil, benéfico e seguro para o doente, orientado pela conhecimento mais atualizado e legitimado em Medicina. A racionalidade, no exercício da homeopatia como instrumento médico, impõe o reconhecimento concomitante da singularidade e da similaridade entre os seres humanos, traduzida em atos diagnósticos e terapêuticos, que permitem a atuação médica de modo integrado, levando em consideração aspectos de harmonia e bem-estar 8

22 biológico, psicológico, social e espiritual, mediados pela noção de vitalidade e mecanismos inteligentes de autorregulação e evolução clínica para a cura ou paliação. HOMEOPATIA E AUTONOMIA O processo de individualização, na escolha da terapêutica homeopática, leva em consideração o conjunto de informações dos medicamentos, valorizando em especial os sintomas ou sensações mais peculiares no caso de cada paciente particular — que se distinguem dos sintomas e sinais patognomônicos da doença — para definir a prescrição. Vale dizer que informações desconsideradas na prática semiológica convencional, voltada para a prescrição de medicamentos enantiopáticos — que passaramcomo tempo a seremchamados de alopáticos — podem ser a chave para a escolha domedicamento homeopático mais ajustado, o que explica a detalhada e minuciosa anamnese médica realizada pelos especialistas em homeopatia. O médico homeopata deve explicar a doença e compreender o doente, para que possa prescrever o medicamento mais individualizado e prevenir novos episódios mórbidos no futuro, atuando, ainda, para promover a saúde. Na homeopatia, Hahnemann advogou a mais completa individualização sintomática para cada paciente a ser tratado, recomendando, nesta tarefa, a busca dos sintomas mais peculiares, característicos, extraordinários e raros, com prescrição de apenas um medicamento para tratar o doente (prática homeopática unicista). Já na sua época, outros médicos que adotaram a homeopatia propuseram o uso de mais de um medicamento, utilizados separadamente, para tratar o doente com suas comorbidades, instituindo a chamada prática homeopática pluralista. Em seguida, alguns médicos passaram a combinar os diversos medicamentos que poderiam ser indicados para os sintomas apresentados pelos doentes numa única formulação — chamada complexo homeopático — constituindo a prática homeopática complexista de prescrição, facilitando a administração de múltiplos medicamentos numa única tomada. Por outro lado, também têm sido oferecidos medicamentos homeopáticos produzidos por companhias farmacêuticas, de venda livre, com combinações de vários medicamentos simples homeopáticos — em alguns casos até associados a fármacos não-homeopáticos — que são adquiridos diretamente pelos pacientes ou indicados por médicos sem que seja necessário o conhecimento

23 especial da matéria médica homeopática. Estas variedades de práticas têm se mostrado úteis e seguras para utilização nos pacientes, sendo evidente que a prática homeopática unicista — cientificamente a de maior simplicidade — exige maior dispêndio de tempo para a consulta e melhor conhecimento das características dos medicamentos que integram a matéria médica homeopática, exigindo formação especializada. Os medicamentos homeopáticos têm suas indicações definidas desde a criação da homeopatia, por meio de informações obtidas de experimentações realizadas em seres humanos aparentemente saudáveis (ensaios patogenéticos homeopáticos/EPH), associadas a outras informações decorrentes de intoxicações e de resultados obtidos em pacientes, para os quais foram indicados. Preparados de acordo com uma farmacotécnica própria, que combina a diluição da substância original com sua forte agitação vertical sequencial, os medicamentos homeopáticos podem ser prescritos em diversas diluições, sendo reconhecidamente muito seguros . Desde a primeira edição do Organon da Arte de Curar , Hahnemann definiu normas claras — metodológicas e éticas — para serem seguidas durante cada EPH. Entre outras, a escolha de voluntários honestos e responsáveis (os quais, preferencialmente, não deveriam receber pagamento pela participação), o uso de apenas uma substância — com alto grau de pureza — em cada teste e preparada segundo regras fixas e a mitigação de fatores de confusão na atribuição do efeito patogenético ao medicamento (incluindo regras dietéticas, uso concomitante de outros medicamentos e orientações para manutenção do estilo habitual de vida). Antes de ter criado a homeopatia, Hahnemann já se indignava contra o uso abusivo das sangrias e purgativos da prática médica ortodoxa. Em 1792 publicou, na revista médica “Der Anzeiger”, comentário crítico sobre a imprecisão no diagnóstico e a realização de quatro sangrias, no curto período de dois dias, que teriam ocasionado a morte do imperador Leopoldo II, da Áustria, mediador de paz entre o império germânico e a França . Durante um período abandonou temporariamente a prática médica, para não mais continuar prejudicando os pacientes, subsistindo economicamente da tradução de obras de medicina e química. Já aplicara, naquela época, a regra ética básica emmedicina de focar primariamente no maior benefício dos doentes e na redução de danos, sendo secundária, em face de conflitos, a priorização de relações amistosas com colegas de profissão. 9 10

24 A aprendizagem da homeopatia, em alguns países como México e Índia, pode ser feita emescolas médicas homeopáticas, comcurrículo similar ao das escolas médicas tradicionais. Na maioria dos países, entretanto, são oferecidos cursos de pós-graduação teórico-práticos para os médicos que desejam se aprimorar na área homeopática. No Brasil a especialização pode ser completada em programas de residência médica ou em cursos de especialização credenciados pela Associação Médica Homeopática Brasileira, com duração mínima de dois anos. Como especialidade matriz que adiciona um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes no campo da terapêutica médica, a homeopatia também tem sido crescentemente incorporada à prática de médicos que atuam em outras especialidades, notadamente em pediatria, clínica médica, ginecologia e medicina de família e comunidade. De acordo com o relatório Demografia Médica no Brasil 2023, a homeopatia ocupava o 33% lugar em número de especialistas, contando com 2.973 médicos qualificados, dos quais 28% também eram especialistas em pediatria . Utilizada no Brasil desde 1840, seu campo de aplicação é vasto, atuando efetivamente em doenças agudas e crônicas de variadas etiologias, tendo, porém, limitações que devem ser atentamente consideradas pelo médico antes de sua indicação. Foi oficialmente reconhecida pela Associação Médica Brasileira em 1979, e logo a seguir em 1980 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como especialidade médica (Resolução CFM nº 1.000/1980), estatuto reconfirmado até o presente momento pela vigente Resolução CFM nº 2.330/2023, em decisão da Comissão Mista de Especialidades, composta pelo Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira e Comissão Nacional de Residência Médica . A unidade da Medicina impõe, no exercício profissional, que o médico domine conhecimentos gerais de anatomia, fisiologia, farmacologia, semiologia, patologia, diagnóstico, terapêutica e epidemiologia, entre outras áreas, ao lado de competências em ética e educação, elencadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina . Tais conhecimentos e habilidades podem ser aplicáveis em seres humanos desde o nascimento até a senescência, em campos específicos de aplicação direcionados para a faixa etária, órgãos isolados ou reunidos em aparelhos e sistemas primariamente terapêuticos, foco no individual ou coletivo, abrindo possibilidades de aprofundamento ou especialização na área médica que considerem o ser humano 11 12 13

25 em sua dimensão biopsicossocial. Por outro lado, Hahnemann também conviveu com o dissenso entre os médicos homeopatas, com divisões internas sobre aspectos práticos (e.g. uso de altas ou baixas diluições, um ou mais medicamentos) e filosóficos (correntes organicistas e vitalistas). Por exemplo, em 10 de agosto de 1836, a Assembleia Geral da Sociedade Homeopática Central de Magdeburgo (Alemanha) aprovou um documento intitulado As dezoito teses de Wolf para amigos e inimigos da homeopatia, contendo um resumo crítico de orientações dadas por Hahnemann. Este documento, redigido quando Hahnemann ainda era vivo, evidencia a negação da homeopatia como um saber imutável, doutrinário, sectário e congelado no tempo, como ainda insistem alguns oponentes, e ressalta a vertente crítica e mais relacionada com o conhecimento médico que vai se acumulando ao longo do tempo. HOMEOPATIA E EQUIDADE: SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE A incorporação do atendimento médico homeopático aos serviços médicos prestados pelo INAMPS, em 1985, constituiu-se no marco preliminar e oficial da inclusão da homeopatia nos serviços públicos de saúde. A Resolução Nº 4 da Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação (CIPLAN), de 8 de março de 1988, definiu as diretrizes para implantação e implementação do atendimento médico homeopático nos serviços públicos do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, que viria a se transformar no atual Sistema Único de Saúde, bem como os procedimentos e rotinas para sua efetiva prática . Assinada pelos secretários-gerais dos ministérios da saúde, educação, previdência e assistência social e do trabalho, a Resolução estabeleceu que apenas médicos, com título de especialista emitido por instituição de ensino oficialmente reconhecida, poderiam desenvolver atividades de homeopatia nas unidades ambulatoriais e hospitais, por livre escolha do paciente, compreendendo o campo da clínica médica geral e da clínica pediátrica em particular, além de possível integração com as diversas especialidades médicas, mediante qualificação apropriada. A Resolução CIPLAN Nº 4, ao reconhecer a necessidade de anamnese mais detalhada e demorada pelos médicos homeopatas, notadamente em doenças crônicas, reduziu o número dos atendimentos realizados para 4 a 8 pacientes por turno de quatro horas, ao invés dos 16 (dezesseis) pacientes usualmente 14

26 atendidos no mesmo período. Ou seja, permitiu a possibilidade de atendimentos com uma hora de duração, ao invés dos quinze minutos tradicionalmente alocados. Previu, também, a implantação de laboratórios de manipulação de medicamentos homeopáticos e cursos de capacitação na área de Farmácia para a preparação de medicamentos constantes da farmacopeia homeopática brasileira, oficializada em 1976. Em 4 de maio de 2006, foi lançada a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde, descrita na Portaria Nº 971 do Ministério da Saúde, a qual reafirma e amplia, sem revogar, a Resolução nº 4/88 da CIPLAN, normatizando de forma mais detalhada e integrada o seu uso na rede pública e definindo estratégias de pesquisas aplicáveis à nossa realidade. Em sua edição original, definiu a disponibilização da homeopatia, acupuntura, fitoterapia e crenoterapia para oferta no SUS, com foco na melhoria dos serviços e aumento da resolutividade das ações preventivas e terapêuticas, desenvolvidas junto aos usuários do SUS. Na incorporação da homeopatia no SUS, consoante a PNPIC, especial ênfase deveria ser dada às ações de prevenção de doenças e de promoção e recuperação da saúde, notadamente na atenção básica. Alinhada com a Estratégia da Saúde da Família (ESF) como eixo para a atenção básica, operacionalizada por meio de equipes de saúde compostas por profissionais da Medicina e Enfermagem, com apoio de agentes de saúde, foram previstas ações educacionais para capacitação em homeopatia dos médicos que atuam na atenção básica. Com o crescimento da especialidade de Medicina de Família e Comunidade no Brasil, há espaço para a formação, em módulos compactos, do profissional médico atuante em Saúde da Família e Comunidade para prescrever a homeopatia em nível primário, sem prescindir de médicos especialistas com atuação na atenção secundária. A facilidade de acesso às matérias-primas básicas, baixa exigência tecnológica para sua preparação, pequeno custo do tratamento associados à ampla aceitabilidade popular, viabilidade econômica e eficácia terapêutica, evidenciada majoritariamente na prática clínica e secundariamente em estudos clínicos controlados, tornam a homeopatia uma terapêutica medicamentosa socialmente apropriada à realidade brasileira, que pode complementar ou mesmo substituir algumas práticas terapêuticas hoje empregadas hegemonicamente pela comunidade médica. O Sistema Único de Saúde do Brasil, fundamentado nos princípios da universalidade da cobertura e da integralidade

27 da assistência, reforça a necessidade de oferecer o tratamento homeopático a todos os seus usuários. Apropriadamente indicada, a terapêutica homeopática é efetiva, segura e eficiente, com boa relação custo-benefício. Seu uso adequado, ao lado do propósito curativo, estimula a prática de bons hábitos de vida que promovem a saúde e ajudam a prevenir doenças. A incorporação racional, progressiva e organizada da Homeopatia nos serviços públicos de saúde dos diversos municípios brasileiros pode, ainda, contribuir decisivamente para o maior sucesso da política de humanização do SUS, pois permite uma maior atenção ao paciente e aos seus aspectos singulares e individualizadores, gerando, assim, maior satisfação e resolução dos problemas de saúde dos usuários. Além do respeito aos princípios da dignidade humana, solidariedade e equidade, em simetria com o devaneio do seu criador, há quase dois séculos, ao advogar que “... O Estado, no futuro, depois de compreender a indispensabilidade de medicamentos homeopáticos perfeitamente preparados, fará com que sejam preparados por uma pessoa competente e imparcial a fim de dá-los gratuitamente a médicos homeopatas treinados em hospitais homeopáticos, que tenham sido examinados teórica e praticamente e, assim, legalmente qualificados. O médico pode então se convencer desses instrumentos divinos de curar e também dá-los gratuitamente a seus pacientes, ricos ou pobres.” Samuel Hahnemann, Organon da Arte de Curar, § 271, 6ª. edição

28 REFERÊNCIAS 1Dudgeon RE. The lesser writings of Samuel Hahnemann. New Delhi: B. Jain Publishers, s.d. In: The Friend of Health, part II . p. 241 2Hahnemann S. Organon da Arte de Curar. Ribeirão Preto: Museu de Homeopatia Abrahão Brickmann, 1995. 3ROSENBAUM, P, DANTAS F. Em busca de consensos em homeopatia: Perspectivas em 2023. Revista de Homeopatia 2023; 84(1):8-22. 4Dantas F. Homeopatia e Deontologia; reflexões preliminares. Revista de Homeopatia 1984;161:23-7. 5Dantas F. Competências básicas do médico homeopata. III SINAPIH, 1991. p.969. 6Freitas FJ, Mello RFA, Barbosa MTS. Matriz de competências para o ensino da homeopatia na graduaçãomédica. Rev. bras. educ. med. 45 (01), 2021. https://doi. org/10.1590/1981-5271v45.1-20200447 7Teixeira H, Dantas F. O bommédico. Rev. bras. educ. med. 1997; 21(1), 39-46. Disponível: https://www.scielo.br/j/rbem/a/SRG69ZZ4wM7G7cvXWDPj7tf/?lang=pt 8Dantas F. Reflexões sistêmicas sobre a definição de médico homeopata. Gazeta Homeopática 1986; 1:2-11 9Dantas F. Omedicamento homeopático provoca efeitos adversos ou agravações medicamento-dependentes? Rev Homeopatia (São Paulo). 2017;80(1/2):17482. Disponível em: http://revista.aph.org.br/index.php/aph/article/view/401. Acessado em 2023 (05 abr) 10Haehl R. Samuel Hahnemann: his life & work. v.2. New Delhi: Jain 1983. p. 35-6 11SCHEFFER, M. et al. Demografia Médica no Brasil 2023. São Paulo, SP: FMUSP, AMB, 2023. 344 p. ISBN: 978-65-00-60986-8

29 12BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM Nº 2.330/2023. Homologa a Portaria CME nº 1/2023, que atualiza a relação de especialidades e áreas de atuação médicas aprovadas pela Comissão Mista de Especialidades. Publicado no D.O.U. de 15 de março de 2023, nº 51, Seção I, p.112. 13BRASIL. Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, p. 8-11, Brasília-DF, 23 jun 2014. Disponível: http://portal.mec.gov.br/ index.php?option=com_docman&view=download&alias=15874-rces003-14&category_slug=junho-2014-pdf&Itemid=30192 14BRASIL. Ministério da Saúde, Ministério da Previdência e Assistência Social, Ministério da Educação e Ministério do Trabalho. Resolução CIPLAN no. 4, de 8 de março de 1988. Fixa diretrizes sobre o atendimentomédico homeopático nos serviços públicos. Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília-DF, 11 de março de 1988. Seção 1, p. 3996-7

30 ACERCA DA NOVÍSSIMA MEDICINA, HOMEOPATIA E O ETHOS DO CUIDADO Paulo Rosenbaum Capítulo 2 Destaques  Uma novíssima Medicina incorpora as ciências humanas às naturais, reinaugurando uma interlocução dispersa no tempo e adequada às necessidades de cada indivíduo.  Uma nova Medicina aceita o que parece ser o mais racional, o menos invasivo e o mais de acordo com uma economia humana baseada no conhecimento da vitalidade.  A Medicina vem gerando estudos epidemiológicos, cujo eixo primário gira não só sobre a questão proteção versus risco mas também na qualidade como subsídio fundamental para acompanhar qualquer coeficiente de confirmação empírica.  Hahnemann percebeu que a doença não se resume à doença stricto sensu e que só existe quando há um ser humano com toda sua carga de angústia, afazeres e cercado de um meio, que pode ser mais ou menos hostil, mais ou menos favorável.  A Homeopatia estimula a ideia de que a atenção integral sempre fez parte da Medicina bem praticada, em qualquer especialidade.  É fundamental que os profissionais estejam cientes das limitações de suas práticas e propostas de intervenção e das possibilidades clínicas de outras práticas médicas, além de atentos para checar se o desaparecimento de uma moléstia não acaba gerando outra, ou novos sintomas, que podem

31 INTRODUÇÃO: UMSABER E UMAARTE A Homeopatia é um saber, uma arte; quem sabe, uma ciência. A Homeopatia é uma racionalidademédica. Mas será que as pessoas a conhecemde fato? A Homeopatia atravessou vários períodos em sua turbulenta travessia de 226 anos se consideramos “Ensaio sobre umnovo princípio para investigar a propriedade natural das drogas”, de 1796, como o texto inaugural. Mas o que será que se buscava com as novas propostas? No que será que elas se inovaram nestes dois séculos? E mais, no que será que ela ainda pode nos surpreender? Achamos que tudo isso pode acontecer ao mesmo tempo. A Homeopatia usa fundamentalmente quatro alicerces para se localizar: o princípio dos semelhantes, a singularidade de cada paciente, as doses mínimas e o medicamento único. Mas quais desses conhecemos de verdade? O princípio dos semelhantes deve ser, de algum modo, familiar ao leitor. ser mais incômodos para a economia do sujeito enfermo.  A Homeopatia desenvolveu, ainda, uma série de percepções relacionadas ao modo particular de adoecer e de se curar de cada ser humano. Busca respeitar o tempo e a linguagem com que cada paciente conta a sua enfermidade. Situa-se entre uma Medicina baseada em narrativas e uma Medicina baseada em provas científicas.  É equivocado supor que o conhecimento homeopático somente poderá ser validado sob o cientificismo de uma positividade mensurável e quantitativista. Há, porém, uma outra forma de enxergar seu estatuto científico.  A Homeopatia nasce, vive e pertence à tradição médica. Não é um corpo estranho, isolada do corpus canônico da Medicina. Busca ser o que a boa ciência médica sempre preconizou: uma Medicina com sujeito, cujo ideal terapêutico é reestabelecer o potencial e o talento com que cada ser nasceu para cuidar de si.

32 Trata-se daquela ideia de que se deve dar algo parecido com a doença ao que adoece, para que ele possa reagir. As vacinas usaram um pouco desse raciocínio. É um antiquíssimo princípio, mais conhecido pelas proposições hipocráticas, mas já presente na tradição judaica e na cultura chinesa há quase 4 mil anos antes da era civil. Já o uso de doses mínimas não foi uma ideia que tenha vindo da cabeça do fundador da Homeopatia, Samuel Hahnemann (1755-1846), mas sim, sistematizada por ele a partir de observações de Hipócrates (400 a.C.) e do médico do século XVIII, Van Helmont, que falava abertamente que a Medicina deveria explorar melhor em suas terapêuticas as doses tênues (artificialmente enfraquecidas) em substituição às doses maciças. Quanto ao uso de medicamentos únicos, trata-se de uma espécie de retomada de um aforismo da Escola Médica de Salerno (famosa escola do medievo que ficou famosa por ter unificado as grandes tradições da Medicina em uma só escola), de que, em primeiro lugar, o médico deveria “não causar dano” ao paciente. Tudo isso já estava na memória da Medicina como aspectos que poderiam, mais cedo ou mais tarde, virema ser resgatados quando algummédico mais curioso os examinasse. ODILEMACONTEMPORÂNEO Não é incomum ouvir falar sobre as crises da Medicina. Mas, por mais que sejam esmiuçadas, não costumam representar ameaça de esgotamento do modelo científico sobre o qual a Medicina se apoia. Pelo contrário, a hegemonia do método científico corrente é cada vez mais sólida e abrangente. Pois, então, onde é que ela, a tal crise, estaria? A pandemia suscitou alguns problemas nametodologia e abordagem científica, abalou alguns atavismos, mas nem chegou a balançar o edifício sobre o qual se apoia a tecnociência contemporânea. As questões não podem estar delimitadas ao sucesso da razão tecnológica, pois o êxito das novas tecnologias não é só estrondoso, mas parece possuir a consistência do que é tanto definitivo como irreversível. O regime de validação dos procedimentos da Medicina é tão extraordinário que não pode se dar ao luxo de se importar demasiadamente com as questões chamadas “menores”, como, por exemplo, os conflitos de interesse que ocorrem nas publicações científicas revisadas por pares, mesmo quando não assumidos.

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