Katya's Reviews > O Que Sabemos do Amor

O Que Sabemos do Amor by Raymond Carver
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Raymond Carver é, não poucas vezes, e bem pelo contrário, apelidado de minimalista. E, foi ao ver vendida esta imagem, que procurei saber mais do autor. Rapidamente, porém, descobri que ele detestava o epíteto e com justa razão: Carver foi pouco senhor das suas obras.

Em 1980, quando se senta frente a um papel em branco e redige a missiva que pretende escusá-lo do editor Gordon Lish, já Carver é um nome conhecido no mundo literário, associado a técnicas de cunho simplista e estilizado. Acabara de escrever O Que Sabemos Do Amor (Beginners, no original) e este era um trabalho que lhe falava particularmente: "(...) much of this has to do with my sobriety and with my new-found (and fragile, I see) mental health and wellbeing (...) I'll tell you the truth, my very sanity is on the line here." *

Os cortes que Lish proponha chegavam a limitar o manuscrito de Carver em mais de 70%; algumas partes sendo reescritas - como era seu hábito -; nomes alterados; novos finais inventados e mesmo os títulos completamente re-imaginados. No ano seguinte, no entanto, e apesar da paixão que Carver emprega em tentar alterar este desfecho, a publicação avança segundo vontade do editor, sob o título "De Que Falamos Quando Falamos De Amor".

E o tratamento de Lish é, claramente, de um de profundo desrespeito pela criação do autor. A ser assim, mais valia ler o nome do editor no lugar do escritor e vice versa.
Vale pois a pena contrastar os textos.

A um dos meus contos preferidos segue-se a seguinte nota (e por estas notas finais muito vale a presente edição):

"Uma coisa pequena e boa

Na versão original, manuscrito de 37 páginas que Gordon Lish cortou em 78 por cento para publicação em livro. O conto foi publicado pela primeira vez na revista Columbia: A Magazine of Poetry and Prose, da Universidade de Columbia, Nova Iorque, na Primavera de 1981, após uma primeira revisão de Lish. Nessa primeira revisão, as últimas 18 páginas foram eliminadas e o título alterado. Em 1982, Carver recuperou o tamanho original do conto, bem como o titulo, e publicou-o na revista Ploughshares, de Cambridge, Massachusetts, sem nenhuma das alterações propostas por Lish, excepto ligeiras modificações no primeiro parágrafo."

Isto trocado por miúdos, e depois de lidas ambas as versões - Carver (Quetzal, O Que Sabemos Do Amor)/Lish (Editorial Teorema, De Que Falamos Quando Falamos De Amor) - resume-se a truncar a história por mais da metade, o que não é ser minimalista, mas censor. E esta barbárie repete-se sistematicamente:
"manuscrito de 15 páginas que Gordon Lish cortou em 78 por cento"; "manuscrito de seis páginas que Gordon Lish cortou em 30 por cento"; "manuscrito de 11 páginas que Gordon Lish cortou em 29 por cento"...

A própria linguagem usada (e transformada) pelo editor é de uma baixeza que pouco ou nada tem que ver com a sensibilidade de Carver. Reduz imenso a dimensão humana e apresenta antes uma caricatura de pessoas: banais, rudes, com o palavrão na ponta da língua e pouco mais na cabeça - ou no coração.

Carver talvez não seja o escritor absolutamente original, genial, incrivelmente maravilhoso e o danado minimalista que os leitores se acostumaram a julgá-lo e me impingiram, mas, para mim, tem um talento incomum: dá-nos textos que começam a media res sem se tornarem ridículos e inverosímeis; dá-nos personagens credíveis e humanos, de mundos comuns e iguais aos nossos; dá-nos vários retratos daquilo que o amor é: do amor filial ao amor criminoso; do amor na terceira idade ao primeiro amor; do amor banal ao amor edificante...

Posto isto, alguns dos contos aqui reunidos são brilhantes enquanto outros são apenas um pequeno entretenimento, e outros ainda são verdadeiros contos de terror pela violência que deles emana.
Honestamente, pagaria bom dinheiro pelo livro apenas para ler Porque Não Dançam, o conto que abre o volume. O que não serve para dizer que os restantes não sejam bons, muito bons e igualmente excelentes, razoáveis ou apenas muito maus.

Entre os favoritos contam-se:

Porque não dançam ⭐⭐⭐⭐⭐
Tanta água, tão perto de casa ⭐⭐⭐⭐
Se assim o quiseres ⭐⭐⭐⭐
Uma coisa pequena e boa ⭐⭐⭐⭐⭐
Meu ⭐⭐⭐⭐
Principiantes ⭐⭐⭐⭐⭐


Este é o verdadeiro Raymond Carver que me foi vendido como a epítome do movimento minimalista, como o escritor de fragmentos poderosos, facto que, não deixando de ser verdade também não deixa de ser mentira.

A imagem de Carver manter-se-á colada à de Lish, é inevitável. Talvez nunca viesse a ser ninguém (enquanto o escritor de nome que é, entenda-se) sem a intervenção deste. Há todavia a reconhecer que a ética não fazia certamente parte das qualidades do editor. E diria que o escritor merece um pouco do nosso tempo investido no seu genuíno trabalho - seja ele o que for.


«...às vezes consegue-se ouvir a neve a cair. Se estivermos tranquilos e a cabeça estiver limpa e estivermos em paz connosco próprios e com todas as coisas, podemos deitar-nos no escuro e ouvir a neve. Tente ouvir a neve um dia.»
274




*https://www.newyorker.com/magazine/20...
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Reading Progress

February 16, 2022 – Started Reading
February 16, 2022 – Shelved
February 16, 2022 –
page 18
6.02% "- O tipo era de meia-idade. Tinha as coisas todas ali no jardim. Não estou a brincar. Apanhámos um grande pifo e dançámos.(...)O Jack e eu dormimos na cama dele.(...) Acordei uma vez. Ele estava a tapar-nos com o cobertor, o tipo...

Ela continuou a falar. Contou a toda a gente. Havia alguma coisa por dizer, ela sabia-o, mas não o conseguia exprimir em palavras. Passado algum tempo deixou de falar no assunto."
February 18, 2022 –
page 41
13.71% "Estamos a beber Teacher's com gelo e água. Dormimos um bocado entre a manhã e tarde. Depois ela saiu da cama e ameaçou saltar pela janela em roupa interior. Tive de a segurar. Estamos apenas num segundo andar, mas mesmo assim."
February 23, 2022 –
page 60
20.07%
February 24, 2022 –
page 60
20.07% "- A Laurie é uma boa mulher. A melhor de todas - continuou. - Não sei o que faria sem ela. Julgo que, se não fosse por ela, queria estar com a Millie, onde quer que se encontre. Onde quer que seja. Acho que é em parte nenhuma, tanto quanto sei. É isso que penso do assunto. Em parte nenhuma - disse ele.- A morte é em parte nenhuma, Nancy. Podes citar-me, se for caso disso"
February 25, 2022 –
page 140
46.82%
February 26, 2022 –
page 145
48.49% "- Quando é que vais parar de fumar? -perguntou ele.
- Quando tu parares - disse ela. - Quando estiver preparada para parar. Talvez seja igual a ti quando paraste de beber. Um dia acordo de manhã e paro. Assim mesmo. Como tu. E depois arranjo um hobby.
- Posso ensinar-te a tricotar - disse ele.
- Acho que não tenho paciência para isso - disse ela. - Para além disso, uma pessoa a tricotar lá em casa é suficiente."
February 27, 2022 –
page 170
56.86% "Na primeira noite, mesmo antes de poderem montar a tenda, Mel Dorn encontrou a rapariga a flutuar de cara para baixo no rio, nua, encalhada perto da margem entre os ramos das árvores. Chamou os outros homens e foram ver o que se passava. Falaram sobre o que haviam de fazer(...)No final decidiram ficar. Montaram as tendas e fizeram uma fogueira e beberam whisky(...) e quando a lua apareceu, falaram sobre a rapariga."
March 2, 2022 –
page 195
65.22% "Para mim, a morte de Dummy significou o final da minha infância extraordinariamente longa, impelindo-me em frente, preparado ou não, para o mundo dos homens - onde a derrota e a morte estão mais presentes na ordem natural das coisas."
March 3, 2022 –
page 245
81.94% "Das(...)vezes em que matei um ganso, disse ele, um minuto ou dois mais tarde vi outro ganso deixar-se ficar para trás e começar a andar em círculos e a chamar pelo ganso que estava estendido no chão.
E também mataste esse?, perguntou ela
Quando consegui, respondeu ele. Por vezes falhei.
E nunca te incomodou?
Nunca(...) Mas há toda a espécie de contradições nesta vida. Não podemos pensar em todas as contradições."
March 3, 2022 – Finished Reading

Comments Showing 1-11 of 11 (11 new)

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message 1: by Paula (new)

Paula Mota Li-o há muitos anos, quando estreou o filme "Short Cuts", mas não me marcou muito. Ainda bem que foi uma boa leitura... de contos! ;-)


message 2: by Katya (new) - added it

Katya Paula wrote: "Li-o há muitos anos, quando estreou o filme "Short Cuts", mas não me marcou muito. Ainda bem que foi uma boa leitura... de contos! ;-)"

Sou uma criatura altamente influenciável, Paula 😁 Eu disse logo que tinha apanhado a dica dos contos. Dão muito jeito para quando não tenho vagar.
Curioso que tinha lido um destes contos há muitos anos e, logo que lhe peguei, reconheci-o. Mas, maioritariamente, também não creio que seja uma coletânea inolvidável.


message 3: by Paula (new)

Paula Mota A nível de livros também eu, Katya. Não posso ver ninguém a ler nada! Eu leio-os espaçadamente e, quando tenho pouco tempo, é o que salva a minha sanidade mental.


message 4: by Katya (new) - added it

Katya Já percebi que é uma estratégia a manter, sim! E eu também cobiço os livros todos...


message 5: by Esther (new)

Esther Brum Também foi um livro que li há imenso tempo e que não me marcou nada. Até fiquei com curiosidade de reler. Mas, na verdade, há tanta coisa que ainda não li …


message 6: by Katya (new) - added it

Katya Esther wrote: "Também foi um livro que li há imenso tempo e que não me marcou nada. Até fiquei com curiosidade de reler. Mas, na verdade, há tanta coisa que ainda não li …"

Gostei muito de alguns contos, Esther, mas sou da mesma opinião. Há tanto que ler para estar a fazer releituras...o tempo não chega para tudo 😁
Aqui o que mais me interessou foi poder ler duas versões da mesma "história". E a comparação entre as duas é surpreendente.


message 7: by Ana (new)

Ana Teles Li o 'outro' livro. Não fazia ideia de que havia este. Quando o li não achei nada de especial.


message 8: by Katya (new) - added it

Katya Ana Teles wrote: "Li o 'outro' livro. Não fazia ideia de que havia este. Quando o li não achei nada de especial."

Olá Ana! Acho que muitos leitores estão na mesma. Esta edição é posterior à morte de Carver.
Para mim, alguns destes contos são terrivelmente bons na versão não editada (por Lish). Vale a pena ler lado a lado. Mas, não são todos 5 estrelas, isso não.


message 9: by Miguel (new)

Miguel Li o livro, a edição da Teorema. Na altura atropelava as leituras todas. Não tenho grande memória do que li. Alguns lugares, talvez. Está no mesmo grupo do Richard Ford pelo tema, aproximação temporal e de lugares, e o género de retratos da condição humana e social.


message 10: by Katya (new) - added it

Katya Miguel wrote: "Obrigado pela partilha Kátia Kasparov :)"
Obrigada pela tentativa de elogio 😉

Miguel wrote: "Li o livro, a edição da Teorema. Na altura atropelava as leituras todas. Não tenho grande memória do que li. Alguns lugares, talvez. Está no mesmo grupo do Richard Ford pelo tema, aproximação tempo..."
Nunca li Ford, pelo que não posso opinar pela proximidade. Mas posso garantir que o Carver, apesar de não ser inolvidável, vale a pena. E vale sobretudo a pena se lhe deres uma hipótese sobre o Lish. Alguns contos não fazem qualquer sentido na versão da Teorema... No entanto, muitos leitores são fãs acérrimos da versão editada por ele.


message 11: by Miguel (new)

Miguel Obrigado Cátia, vou procurar quando for à biblioteca, juntamente com o Luiz Pacheco.


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