Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Sonífera Ilha

Faz dois dias que boio ao lado dos meus filhos, respirando por snorkels e apontando peixes uns para os outros

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Eu fui passar o feriado numa ilha. Queira Deus —em quem não acredito, mas torço muitíssimo para que acredite em mim— jamais ter o coração tão calejado a ponto de achar que estar numa ilha é um acontecimento banal, como entrar numa Droga Raia ou num Casa e Construção.

Uma ilha não é um pedaço de terra cercado de água por todos os lados, como dizem os atlas: é o portal espaço temporal em que "Tom Sawyer" sobreviveu, em que o "Náufrago" Tom Hanks perseverou com o amigo Wilson, é o cenário das primeiras semanas de "A Gata Comeu" —Pobre Tom Hanks que nunca conheceu a Christiane Torloni. A história da teledramaturgia poderia ter sido bem diferente. Ou, ao menos, a vida do Tom Hanks.

Quando Thomas Morus escreveu "A Utopia", prospectando uma sociedade perfeita, resolveu plantá-la não no topo de uma montanha, num planalto ou numa planície, mas numa ilha. Ninguém jamais perguntou "quais os dez livros que você levaria para um istmo deserto?". "As dez músicas que você levaria para uma chapada deserta?". "Quem seria a pessoa que você levaria para um fiorde deserto?" (O fiorde deixaria, aí, claro, de ser deserto).

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 10 de Setembro de 2023, mostra o desenho de uma criança usando óculos de mergulho e snorkel submersa no mar.
Adams Carvalho

Ilha é um negócio sério. Sabendo que eu ia passar o feriado num pedaço de terra cercado de água por todos os lados, que seria a primeira vez que meus filhos estariam, na melhor acepção do termo, isolados, resolvi me (nos) equipar. Na última terça, 6 de setembro, dando um Google "mergulho – loja – equipamentos", fui parar na Claumar, na Mourato Coelho.

Fui sem ter ideia do que se tratava. Parei na frente. A porta estava trancada. Um senhor veio abrir. Confesso que eu, em meu, sei lá, etarismo estrutural, pensei, poxa, não tem vendedor na loja, deixaram um tiozinho cuidando. "Veio buscar roupa?", ele me perguntou. "Quê?". "Você veio buscar roupa lavada?". Vi uma arara infinita de roupas de Neoprene e entendi que ele não era o porteiro. Logo, percebi mais: eu era um aprendiz diante de um sábio. Cláudio. Dono da Claumar. Atrás dele, várias fotos de mergulho desde décadas atrás. Meti o etarismo entre as pernas e entrei na loja.

"Não. Eu vim comprar equipamento de mergulho pros meus filhos. Você vende pra criança?". Já encabulado, achei que "vende pra criança" ia fechar a cara do Cláudio, ainda mais agora que eu sabia o histórico dele. Pensei que ele diria, tipo, "aqui é um estabelecimento sério", mas foi o contrário. Pra minha sorte, Cláudio é um cara que entende o valor metafísico de uma ilha. De uma praia. De um mergulho. Me vendeu dois kits da máscara e snorkel, mais dois pares de pés de pato. Falou umas cinco vezes, enquanto vendia, "que bom que você tá ensinando seus filhos a mergulhar!".

Eu disse, olha, menos, nem sei se vão gostar, mas é uma delícia, vamos ver. Ele me contou, orgulhoso, que a filha era campeã de mergulho em apneia. Os dois outros filhos eram mergulhadores também. "Sabe o que é melhor de ensinar as crianças a mergulhar? É que chega lá no fundo e não tem nenhum botão, nenhuma tela!" Tem toda a razão, o Cláudio.

Faz dois dias que boio ao lado dos meus filhos, respirando por snorkels e apontando peixes uns para os outros. Só preciso esconder deles as 897 mil fotos que tirei com meus botões e vejo nas minhas 32 telas 87 vezes por dia. Ainda hei de achar a minha ilha.

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