RIO — A cada século que passa o sertão vai deixando de ser uma região geográfica. Está se tornando uma paisagem cultural, um conjunto de imagens, narrativas e valores. Esses elementos mantêm uma coerência essencial entre si. E se articulam de um modo flexível, incorporando as novidades que o tempo traz.
Não que o sertão geográfico tenha deixado de existir; é o sertão simbólico que vai se espalhando. Ele cobre tudo: começa cobrindo o Cariri, o agreste, o Pajeú, e as minúcias de clima, vegetação ou solo retrocedem para segundo plano. É um espírito que paira.
O sertão do século XXI não tem cangaceiros e beatos, mas tem traficantes de drogas e seitas evangélicas. A contaminação da cultura urbana se dá via TV e internet. Na beira das rodovias, as barraquinhas vendem banana, cajá, DVDs de filmes pornô e de lutas marciais.
Ariano Suassuna dizia que o mundo do sertanejo estava mais próximo do mundo dos samurais japoneses do que dos caubóis norte-americanos. São valores que envolvem austeridade, lealdade, espírito coletivo, autoridade, obediência, amor próprio, serenidade na fartura, estoicismo na fome. O sertanejo tradicional repele uma cultura urbana que lhe chega como um culto ao consumismo, à busca do prazer, à fugacidade das relações, à quebra da palavra dada, à ostentação, ao egoísmo.
Por outro lado, a cultura urbana ajuda a quebrar a rígida verticalização entre as classes, entre os adultos e os jovens, entre o homem e a mulher, e expande os espaços de poder de quem nunca teve direito a voz. O sertão é sólido, mas se mexe.
Essa mescla de valores urbanos/modernos e rurais/tradicionais fornece a energia dramática a uma literatura de inspiração sertaneja, desde Suassuna (“Romance d’A Pedra do Reino”) a W. J. Solha (“Relato de Prócula”), de Osman Lins (“Retábulo de Santa Joana Carolina”) a Ronaldo Correia de Brito (“Faca”), e muitos outros autores. E explora a contradição crescente e explosiva no interior de um sertão que se expande como símbolo idealizado enquanto recebe a contaminação imaterial do mundo que o cerca.
A música popular, talvez o mais fervilhante desses canais de comunicação, mostra que desde Luiz Gonzaga a música sertaneja dialoga em pé de igualdade com a música urbana dos grandes centros. Enquanto o rótulo genérico “sertanejo” é sequestrado pela canção romântica da classe média das cidades, o sertão verdadeiro emprega samplers para injetar energia no coco de embolada, ou acopla guitarra com rabeca para falar do futuro do planeta.