Uma jovem deixa a casa da amiga e caminha tranquila para sua residência em uma típica noite em uma pacata cidadezinha francesa. No meio do caminho, é morta brutalmente em um crime que choca a região e atormenta os responsáveis pela investigação, que têm dificuldade em desvendar o assassinato. Esta é a premissa de “A noite do dia 12”, longa de Dominik Moll que foi o grande vencedor dos prêmios César 2023 e que chega hoje aos cinemas brasileiros. A produção deixou o chamado “Oscar francês” com seis estatuetas, incluindo melhor filme e direção.
O longa é uma adaptação de um caso real citado no livro “18.3: Une année à la PJ”, em que a escritora Pauline Guéna relata sua experiência ao passar um ano acompanhando os trabalhos no departamento de polícia de Versalhes, próximo à Paris. Apesar de não ser um fã do gênero true crime, Moll, também roteirista do longa ao lado de Gilles Marchand, viu na história a oportunidade de tratar de temas mais abrangentes.
— Quem faz conteúdo true crime não pode esquecer que existem vítimas reais, que existe uma dor real. Nunca perdi de vista que, mesmo sendo um filme de ficção em que mudei parte da história, minha vítima era real e que seus pais ainda sofrem dessa perda. Não quis fazer uma obra voyeurística — conta Moll, de 61 anos, em entrevista via Zoom. — No meu filme, quis retratar como aquele crime afeta as pessoas ao redor, especialmente os investigadores, e o que diz sobre a sociedade moderna e a relação entre homens e mulheres. Mas muita gente faz séries e filmes de true crime apenas pelo sensacionalismo do tema.
O cineasta coloca o debate de gênero como ponto central de sua trama. Em cena, vemos alguns investigadores, em sua maioria homens, citando o comportamento social da vítima como forma de “justificar” sua morte.
- 'O cinema me alimenta': Com três filmes em 2023, diretor Hsu Chien vê até 10 longas por semana
— A grande questão do filme é, como um investigador diz em cena, que existe algo de errado na relação entre homens e mulheres. Este é um dos temas que quis abordar com meu co-roteirista. Quis debater sobre como, quando temos uma vítima mulher, muitas vezes ela é colocada como culpada da própria violência que sofre por causa de relacionamentos, pelo número de parceiros sexuais. Quis explorar esse tipo de julgamento social absurdo que vemos no dia a dia — aponta.
Ao optar por fazer um filme sobre um caso de feminicídio baseado em um livro de uma autora, Moll reconhece que poderia ser questionado sobre seu lugar de fala, ainda mais contando com um outro homem como co-roteirista, mas destaca que é importante que homens também se coloquem em meio a debates do tipo.
— Uma coisa que sempre conversei com Marchand é que como homens não poderíamos fazer um filme feminista, mas poderíamos sim questionar certas coisas. É um filme que tenta jogar perguntas. Com o movimento #MeToo, as mulheres passaram a falar, e falar com volume sobre o que aconteceu com elas, mas também é importante que os homens começassem a escutá-las. Quis tocar nisso — fala o diretor. — Ao longo do filme, exploro nossas próprias perguntas enquanto homens sobre a violência masculina. Não quis dizer que todo homem é um agressor, estuprador ou assassino, mas é comprovado que a maior parte da violência cometida no mundo é feita por homens. Todos os homens deveriam se contestar por isso.
Filho de pai alemão e mãe francesa, Moll se vê como uma mistura desses dois países. Ele nasceu e cresceu na Alemanha e se mudou para a França para estudar cinema, e permaneceu lá construindo uma carreira consolidada na cena do audiovisual francês. Antes de “A noite do dia 12”, ele lançou os elogiados “Harry chegou para ajudar” (2000) e “Más notícias para o sr. Mars” (2016).
- Não só para baixinhos: Xuxa e Pedro Bial antecipam detalhes de série documental sobre a apresentadora
— Quando comecei a me interessar por cinema, vir para Paris foi uma decisão natural. A França é um lugar diferenciado quando você quer trabalhar com filmes de arte. Ainda existe um público sedento por pequenos filmes. Diretores independentes sofrem muito na Alemanha, porque não existe um grande público para seus filmes. Me sinto sortudo de trabalhar na França porque o cinema faz parte da cultura francesa e temos muitos incentivos do governo para fazer filmes — destaca o cineasta, que costumava a visitar a Cinemateca Francesa na juventude para “se educar” sobre a sétima arte.