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Por Ruan de Sousa Gabriel


O sociólogo da religião e escritor Reginaldo Prandi, autor de "Motivos e razões para matar e morrer" Agência O Globo — Foto:
O sociólogo da religião e escritor Reginaldo Prandi, autor de "Motivos e razões para matar e morrer" Agência O Globo — Foto:

Os orixás estão em peso na avenida. Só no Rio, seis das 12 escolas de samba do Grupo Especial carioca honram a cultura afro-brasileira. A Grande Rio apresentar os caminhos de Exu. Em São Paulo, a Barroca Zona Sul homenageia a umbanda. A Acadêmicos do Tatuapé exalta o Preto Velho; a Águia de Ouro, Oxalá. O sociólogo e escritor Reginaldo Prandi arrisca uma explicação para a popularidade carnavalesca dos orixás: à medida que aumenta a intolerância religiosa, a fé afro-brasileira é acolhidas no campo cultural.

— O Carnaval sempre aproximou o público das religiões afro-brasileiras. Ao conhecer os orixás, posso me identificar com eles e inspirar neles a minha conduta. É isso o que acaba com o preconceito — diz Prandi, que acaba de lançar um novo romance: “Motivos e razões para matar e morrer”.

Professor da USP e filho de Oxaguiã, Prandi é autor de vários títulos sobre as religiões afro-brasileiras, como “Herdeiras do axé” e “Segredos guardados”. Ele provou que, ao contrário do que se pensava, a capital paulista contava com uma presença expressiva do candomblé. Até então, acreditava-se o candomblé florescera apenas em regiões onde houve grandes contingentes de escravizados, como o Rio. Já umbanda teria predominado em cidades com menor presença negra, como São Paulo. A investigação pioneira de Prandi rendeu o livro “Os candomblés de São Paulo”, publicado em 1991 e relançado no ano passado acrescido de três novos capítulos.

A sociologia da religião levou Prandi à literatura. A antropóloga Lilia Moritz Schwarz, sua colega na USP e fundadora da Companhia das Letras, ajudou. Ela sugeriu que ele publicasse uma compilação de mitos africanos. Lançado em 2001, “Mitologia dos orixás” fez tanto sucesso que Prandi passou a escrever livros infantis sobre o mesmo tema, como “Orumarê, o arco-íris”, “Xangô, o trovão” e “Ifá, o adivinho”. Daí para a ficção foi um pulo. Em 2006, estreou no romance policial com “Morte nos búzios”, no qual assassinatos são previstos nos búzios de uma mãe-de-santo. Na ficção juvenil “Aimó”, de 2017, uma menina africana traficada para o Brasil acorda em lugar habitado por orixás.

— Seja na sociologia, na literatura infantil e no romance policial, vemos o mesmo Reginaldo: escritor talentoso e pesquisador destemido, desbravador e preocupado pelo Brasil — elogia Lilia.

Em “Motivos e razões para matar e morrer”, a religiosidade afro-brasileira aparece de relance. Uma das personagens, Conceição, matriarca de uma das poucas famílias negras da cidade, joga búzios. Embora haja um assassinato logo nas primeiras páginas — uma moça de má reputação é morta a facadas na porta do cinema —, o romance lembra, à primeira vista, uma inocente novelinha das seis. A história se passa no final dos anos 1950, numa cidadezinha interiorana onde as ruas ainda são de terra e velhinhas se sentam à calçada para vigiar a vida de todos. O protagonista da história é Mateus, um adolescente que perdeu os pais em circunstâncias misteriosas, vive com os avós carinhosos e se recusa a se desfazer da gaiola de seu passarinho recém-falecido. Há cenas de rachar de rir.

No entanto, à medida que as páginas avançam, o leitor se convence de que “Motivos e razões para matar e morrer” se parece mais com um daqueles folhetins cheios de cenas fortes exibidos tarde da noite. Ao longo de 334 páginas, há 12 mortes violentas. Há também muita hipocrisia, tráfico de drogas, suspeita de pedofilia, corrupção policial, castração e descrições de práticas um tanto heterodoxas de iniciação sexual. “E pensar que éramos uma cidade tranquila, calma. E de repente fomos invadidos por assassinatos, suicídios, e por tentativas de morte que, felizmente, não chegaram a se concretizar”, espanta-se Artur, avó de Mateus.

O romance acompanha o impacto das mortes em Mateus e seu grupo de amigos. Os mistérios vão sendo solucionados apesar da má vontade do delegado, que encerrava rapidamente os casos para não incomodar os poderosos da região ou prejudicar seus próprios interesses. A detetive mais competente da cidade é Dona Nena, uma senhora que passa o dia na calçada a interrogar os passantes. A personagem permite que o Prandi escritor se alie ao sociólogo para falar da “fofoca como forma de controle social”.

— A Dona Nena é a própria cidade. Em cidade pequena, todo mundo sabe de tudo: quem você namora, onde se sentam no cinema, ao lado de quem você assiste á missa etc. — diz ele, que, ao escrever ficção, mantém o sociólogo em rédea curta para evitar explicações excessivas. — Minha tendência é explicar, mas depois eu corto. O sociólogo tem outros veículos para se manifestar. Já o escritor prefere mostrar a explicar. Mas mostrar a realidade, senão eu teria que partir para a ficção científica.

Nascido em 1946, em Potirendaba, no interior de São Paulo, Prandi quis mostrar o que acontece quando tudo que era varrido para debaixo do tapete em recantos conservadores vem à tona. Mas jura que não contou tudo.

— Me arrependo de não ter contato mais o que o pessoal fazia no escurinho do cinema.

Capa de "Motivos e razões para matar e morrer", romance de Reginaldo Prandi lançado pela Companhia das Letras Divulgação — Foto:
Capa de "Motivos e razões para matar e morrer", romance de Reginaldo Prandi lançado pela Companhia das Letras Divulgação — Foto:

Serviço:

"Motivos e razões para mater e morrer"

Autor: Reginaldo Prandi. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 336. Preço: R$ 74,90.

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