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Por , O GLOBO — Rio de Janeiro

Junto com Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói, Ivan Turguêniev compõe a tríade de titãs da literatura russa. Conhecido por dar vida a personagens que encarnam o espírito do tempo em períodos de transição, o autor de “Pais e filhos” foi um dos observadores mais sensíveis dos dramas de seu povo. Lembremos que os contos de “Memórias de um caçador”, sua primeira incursão na prosa, causaram grande impacto sobre a intelectualidade e impulsionaram a abolição do regime de servidão na Rússia, um dos acontecimentos mais marcantes do século XIX.

Escrita ao longo de cinco meses, a novela “Ássia” (1858), que acaba de ser publicada pela Editora 34 com tradução de Fátima Biachi, não é diferente. Amarrada por um enredo romântico aparentemente simples, a história de amor apresenta uma alegoria que descreve um traço elementar da geração de jovens ilustrados dos anos 1840: o imobilismo diante de momentos cruciais.

A narrativa gira em torno de um jovem aristocrata russo que decide viajar ao exterior com o único propósito de desfrutar de belas paisagens e conhecer pessoas. Em uma pequena cidade alemã chamada L., às margens do Reno, ele conhece Gáguin e Ássia, dois meio-irmãos russos: ele, um aspirante a artista; ela, a filha ilegítima que é discriminada por conta de sua origem. A personalidade arredia e imprevisível de Ássia o cativa, e o jovem se apaixona profundamente por ela. Tomado por um ímpeto arrebatador, ele propõe a ela um encontro para se declarar e pedi-la em casamento. Diante da amada, no entanto, o protagonista fraqueja e não consegue expor os seus sentimentos.

Centro das discussões ideológicas

Na ocasião de sua publicação na prestigiada revista russa O Contemporâneo, Turguêniev manifestou preocupações a respeito da recepção à obra, pois “Ássia” nada tinha em comum “com a literatura picante moderna” e poderia parecer insípida ao público ávido por uma prosa mais engajada. Contudo, os ares de radicalidade arrastaram a novela para o centro das discussões ideológicas.

No célebre ensaio “O russo no rendez-vous”, o filósofo Nikolai Tchernichévski propôs uma leitura segundo a qual há em “Ássia” uma crítica à inércia dos chamados “homens supérfluos”, isto é, homens sensíveis e de boa formação que tinham por característica a indecisão e a impotência diante dos problemas da sociedade russa. A desgraça a que o protagonista é lançado serve de alerta aos leitores: em tempos de ação urgente, a inércia conduz à ruína.

A fina leitura de Tchernichévski agrega valor à novela e a coloca entre as obras de interpretação social mais profícuas da época. No enredo, o narrador se mostra bastante ousado enquanto não se exige dele qualquer ação concreta: na segurança de sua casa, planeja encontros e cria planos para declarar o seu amor a Ássia. No momento definitivo, porém, quando é impelido a expressar os seus sentimentos e desejos de maneira clara, o herói perde a sua força e sucumbe à inação.

Toda essa trama, que pintava um retrato objetivo daquela geração, recebia forma no problema particular do narrador. “Assim são as nossas melhores pessoas”, concluiu Tchernichévski à época ao apontar indecisão e a impotência como as características que determinavam a essência dessas pessoas — homens cultos que liam o que havia de mais progressista, mas que se furtavam ao dever de intervir para transformar a realidade concreta.

A certa altura da novela, é o próprio Turguêniev quem dá uma pista a esse respeito ao constatar que a inação não era um traço apenas do protagonista-narrador, mas também de Gáguin, o meio-irmão de Ássia, que se revela um artista diletante ao constatar que “enquanto sonhamos com o trabalho, voamos como águia, é como se pudéssemos mover o mundo. Mas, quando passamos à execução, sentimo-nos imediatamente fracos e cansados.” Os dois homens, cada um supérfluo à sua maneira, falam por uma geração.

Como observa Fátima Bianchi em seu posfácio, a obra “foi concebida em um momento de intensa crise ideológica e espiritual e toca em uma série de questões sociais e pessoais que seu autor teve de encarar em meados da década de 1850”.

Ao ser lida como uma crítica aos homens supérfluos, a novela toca diretamente em um dos princípios que guiavam à época o idealismo da intelligentsia russa: o de que a transformação social só partiria da transformação moral do indivíduo, o que atribuía aos escritores uma espécie de ascendência espiritual sobre as elites pensantes. Com a transformação dos homens, que se tornariam melhores por meio da literatura, a própria sociedade como um todo se elevaria espiritualmente e materialmente. Ao evidenciar a fraqueza do herói de “Ássia” diante de um momento decisivo, o seu autor pôs em xeque a ilusão que pairava sobre “os melhores homens” da sociedade.

Por mais que Turguêniev tenha se dedicado a compor uma história de amor e decepção às margens do Rio Reno, com uma formosa prosa poética que traduzisse em palavras a beleza idílica dos campos alemães, a sua forma não pôde se furtar à crise ideológica de seu tempo.

*André Rosa é crítico e mestre em Literatura Comparada pela UFRJ

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