Edgard Scandurra é uma daquelas figuras cuja história se confunde com a do rock brasileiro — e pode-se falar isso sem parecer um chavão barato. Guitarrista canhoto, cantor e compositor, ele celebra 40 anos de carreira em 2021, considerando como marco inicial o primeiro cachê que recebeu ao tocar num clube da zona sul de São Paulo, em 1981, mesmo ano em que se juntaria a Nasi para formar o Ira! . A festa terá uma temporada de seis lives, batizada de “40 anos de lado B”, sempre às segundas-feiras, às 21h, a partir de hoje, em seu canal no YouTube (/edgardscandurra). Em casa, Scandurra vai reviver momentos marcantes de seu repertório.
E deve ter dado uma trabalheira selecionar as obras, já que entre discos do Ira!, projetos fora da banda e trabalhos de outros artistas, a guitarra de Scandurra marca presença em mais de 90 discos.
— Eu tenho um problema muito sério em falar “não” — admite, bem-humorado, o músico de 59 anos. — Mas tenho sorte de gostar de ouvir tudo o que eu gravei. As pessoas conhecem meu jeito de tocar e me convidam dando essa liberdade, de eu botar minha guitarra ali. É assim com Marcelo Jeneci, com Karina Buhr, e também com Arnaldo Antunes e tantos outros.
Rock sem elitismo
Scandurra brinca que “já é jovem há muito tempo”, mas mesmo as piadas têm um fundo de verdade. Hoje, ele é respeitado e querido tanto pelas novas gerações da música brasileira quanto por aqueles que o acompanharam surgindo com referências da subcultura mod e do punk rock. Já foi eleito melhor guitarrista do Brasil diversas vezes, seja pelas revistas especializadas “Heavy Metal Brasil” e “Bizz” ou por voto popular no Video Music Brasil da MTV. Mas ai de você se exaltar a imagem de “cara legal” que ele construiu nessas quatro décadas:
— Vou levar para a terapia! (risos) Tenho minhas crises, minhas culpas, também. Eu procuro ser a melhor pessoa possível, mas é um dia após o outro, tentando não repetir padrões, respeitando as pessoas. Mas todo mundo devia ser assim, né?
Ele fala mais sério quando analisa a perda de espaço do rock enquanto gênero popular e instrumento de contestação:
— O rock hoje ainda tem um impacto forte na sociedade, mas é uma voz de transformação que está junta com outras que antes talvez não dividissem espaço, como o funk, o rap, essa nova MPB... Só que uma música para captar a identidade da juventude tem que falar do dia a dia, um lado popular que o rock deixou de lado e foi por outro caminho. Esse ideal de postura roqueira pode descambar para uma coisa classista, elitista, e temos que tomar cuidado.
Apoio da Lei Aldir Blanc
A série de lives será aberta com a primeira apresentação ao vivo de “Jogo das semelhanças — Gravações de celular”, álbum de origem autoexplicativa que Scandurra compôs, gravou e lançou de sua casa, durante a quarentena. A temporada foi contemplada pela Lei Aldir Blanc , o que representou um respiro bem-vindo para o músico, que diante da falta de shows acabou botando à venda alguns instrumentos. Vendeu três guitarras — sobrou uma, de 12 cordas, que ele sabe que só “Scandurras” comprariam —, um amplificador e uma bateria (essa para Virginie Boutaud, ex-vocalista da banda new wave Metrô).
— Embora eu tenha uma reserva, uma hora ela seca. Tem músico de rock que teve família rica, uma origem tranquila, mas minha vida não permitiu muito isso — conta o guitarrista, pai de Daniel, Lucas, Joaquim e Estela. — Mas a verdade é que eu tenho muitas guitarras, e várias delas eu comprei num ímpeto, mas deixei guardada por 20 anos e toquei duas, três vezes. Pratiquei o desapego, me deu uma forcinha, mas nada de mais.
Depois de “Jogo das semelhanças” — que deve ter uma continuação, já que Scandurra segue gravando músicas pelo celular —, as lives passam por “EST”, álbum que lançou com a cantora Silvia Tape em 2015 (dia 22, com participação de Silvia); pelo primeiro disco solo “Amigos invisíveis” (29/3); pelo projeto eletrônico “Benzina” (5/4), que tanto adora; pelo especial “ A curva da cintura ”, álbum colaborativo com Arnaldo Antunes e o maliense Toumani Diabaté (12/4); e fecha, claro, com o repertório do Ira!, em 19 de abril.
Blues com Marília Gabriela
O projeto é apenas uma amostra da numerosa discografia de Scandurra — que gravou ainda com Lobão, Ultraje a Rigor, Mercenárias e o projeto infantil Pequeno Cidadão —mas serve como evidência de uma das principais características do trabalho dele: a capacidade de transitar entre o alternativo (para não dizer underground) e o mainstream.
— Na minha cabeça, todo som que eu faço é alternativo — reflete. — Mas claro que algumas músicas são muito populares. E eu tenho consciência, quando estou fazendo, que assim é. Numa música que faço para o Ira!, por exemplo, eu penso no público, no que ele quer ouvir. Por um tempo não pensava, hoje sim. É engraçado, às vezes estou fazendo um projeto alternativo e sinto falta da grana do mainstream. Mas aí vou fazer um show do Ira! e o telão com o patrocínio na minha cara me incomoda (risos) .
Enquanto a vacina não vem, Scandurra prepara lançamentos, no mínimo, curiosos: um “sambinha” com o cantor Leno, ícone da Jovem Guarda (“mais mod que eu!”), e um blues que terá como vocalista a apresentadora Marília Gabriela:
— Ela tem uma voz ótima! Começamos a trocar ideia na pandemia, quando eu postava umas músicas no Instagram, e pintou esse projetão. Vai chamar atenção, estamos só esperando voltar alguma normalidade para soltar.