Substituir um artista consagrado é sempre um tema difícil. Se a saúde da portuguesa Maria João Pires, íntima dos melômanos brasileiros, nos impediu de vê-la naquilo que é repertório mais do que consagrado, abriu-se na Série O GLOBO/Dellarte um espaço para reconhecer, nesta segunda-feira (23), às 20h, no Theatro Municipal do Rio, através do pianista Javier Perianes, a música de um país em seus próprios termos.
No cânone da música clássica, a Espanha nos chega frequentemente engarrafada por franceses (Ravel, Debussy, Bizet) e russos (Rimsky- Korsakov, Tchaikovsky), com resultados entre exótico orientalista, mais estereotipado, e a imaginação transcendente. Não se trata de jogar fora a suíte “Iberia”, de Debussy, ou o “Capricho espanhol”, de Rimsky Korsakov, mas de se indagar se não nos desviamos demais dos compositores do país que transcende fronteiras (e contrabandos) musicais.
— Talvez essa expressão quase exclusivamente folclórica de certa música espanhola venha precisamente por esses compositores que escreveram sobre a Espanha, alguns com extraordinário acerto e inspiração, como Debussy e Ravel. Nesse recital, exploramos esses vínculos entre-fronteiras de Espanha e França, essas influências cruzadas — afirma ao GLOBO Perianes, de 45 anos, que retorna ao Brasil após ter tocado no ano passado com a Osesp, na Sala São Paulo. Ele também se apresentará por lá nesta terça e quarta (24 e 25), pela Série Cultura Artística.
Mas talvez a grande memória brasileira de Perianes seja o convívio com outro especialista em Debussy: o falecido Nelson Freire, ícone do pianismo brasileiro que morreu em 2021, a quem Perianes descreve como “um maestro com maiúsculas”.
— Tive a alegria de recebê-lo duas vezes no meu apartamento, enquanto ele estudava para concertos na Espanha. Sempre tive e terei uma enorme admiração, respeito e devoção pela arte incomparável, pessoal e única de Nelson Freire. Ainda por cima, era uma pessoa generosa, bondosa, com uma maneira de fazer música com honestidade e sinceridade.
Para esse roteiro de viagem franco-espanhola, Perianes abrirá a noite de hoje, no Municipal do Rio, com “Le tombeau de Claude Debussy”, escrita por Manuel de Falla (1876-1946), seguida por três peças espanholistas do próprio Debussy: “A noite em Granada”, “La Puerta del Vino“ e “Serenata interrompida”.
A esse diálogo se segue “El Albayzin”, evocação com fortes tintas do flamencas do bairro cigano de Granada, extraída da “outra” suíte “Iberia“, esta de Isaac Albéniz (1860-1909). E Perianes aponta também um outro contraste interessante.
— Manuel de Falla foi um apaixonado pelo flamenco e extraordinário conhecedor de seus ritmos e seus diferentes “palos” — afirma o músico, que também ressalta a enorme intimidade de De Falla com o impressionismo francês de Ravel e Debussy, além da obra de Erik Satie. — Foi assim que ele conseguiu incorporar, de maneira extremamente refinada e sutil, certos elementos do flamenco, de forma quase ou nunca identificável facilmente. No caso de Albéniz, sim, já encontramos uma literalidade maior na hora de usar recursos e ritmos flamencos.
O concerto se encerra com uma das peças mais difíceis do repertório espanhol: as “Goyescas”, de Enrique Granados, monumento do piano ibérico defendido por artistas lendários como Alicia de Larrocha. Tragicamente morto em 1916, ao tentar salvar sua mulher no Canal da Mancha, depois de seu navio ter sido torpedeado por submarinos alemães, Granados se inspirou na obra do pintor Francisco de Goya (1746-1828) para criar cenas musicais da sociedade urbana, em que a inspiração folclórica desaparece em nome de elegância virtuosa, mas nunca o colorido.
Javier Perianes
Onde: Theatro Municipal do Rio - Praça Floriano, S/Nº, Cinelândia ( 2332-9191). Quando: Seg, às 20h. Quanto: Valores entre R$ 50 (galeria) a R$ 3 mil (frisas e camarotes). Classificação: Livre.
Onde: Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16, Campos Elíseos (11 3367-9500). Quando: Ter e qua, às 20h30. Quanto: Valores entre R$ 60 a R$ 672. Classificação: Livre.