RIO - Noite após noite, enquanto trabalha na máquina de costura, Nadejda sussurra versos do marido, Óssip Mandelstam, um dos poetas mais importantes da Rússia do século XX. Ele está morto, e é somente para manter vivas as suas palavras que ela as recita. A estratégia dá certo: sem ela, a obra de Óssip teria sido enterrada junto com ele próprio, em 1938, e a literatura russa a perderia para sempre. Se os 300 poemas sobreviveram ao expurgo stalinista e pulsam até hoje, foi graças a Nadejda, que os guardou na memória (prodigiosa) por 25 anos.
Lírica e cruel, a história do casal inspirou a paulistana Noemi Jaffe a escrever “O que ela sussurra”, curto romance narrado por Nadejda em que muito se fala de amor, paixão, saudade e resistência numa época de terror político e existencial. Sem cair na chatice panfletária, Noemi retrata também um caso de mulher-genial-ofuscada-por-marido-famoso, tipo de injustiça histórica muito debatida nos últimos tempos.
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Doutora em literatura brasileira e autora de 11 livros, Noemi conta que já conhecia a obra de Óssip quando se interessou por Nadejda, há três anos. Nascido na Polônia em 1891 e criado na Rússia, na então União Soviética, ele era um poeta renomado, mas caiu em desgraça em 1933, ao divulgar um poema satirizando o tirano Joseph Stálin. Escapou de ser condenado à morte, encarou um exílio penoso ao lado de Nadejda e, no fim, foi deportado para a Sibéria, onde morreu. Ele tinha 47 anos. Ela, 39.
A companheira de Óssip esteve ao seu lado desde 1922 e assim se manteve depois de sua morte. Metaforicamente, essa paixão sem fim assegurou a sobrevivência do poeta:
— Quando Óssip morreu, todos os seus poemas foram destruídos. Qualquer pessoa que os tivesse seria perseguida pelo regime stalinista. Nadejda memorizou tudo e manteve a obra inédita durante 25 anos. Os poemas só puderam ser publicados em 1962, depois da morte do Stálin (1953) — conta Noemi, que também é crítica literária. — Fiquei fascinada com tudo o que Nadejda fez.
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Em suas pesquisas, Noemi se deparou com uma personagem gigante que poderia ter se perdido. Ela diz que não é exagero pensar no poeta como a razão de vida de Nadejda, que morreu somente em 1980, aos 81 anos, tendo visto o reconhecimento da obra de Óssip.
— Nadejda pensava que sua vida não tinha mais sentido com a morte dele, mas só permaneceu viva para continuar sussurrando os poemas do marido — assegura Noemi.
Ecos do passado
Como bom romance histórico, “O que ela sussurra” reconstrói a época e a intensa trajetória do casal, com muitos percalços e muito afeto. Mais que isso, reforça a certeza de Nadejda de que valia a pena preservar os versos de Óssip, assim como de outros escritores proscritos. É uma mensagem contra o assassinato institucional das artes.
Noemi encontrou nessa aventura temas que lhe são caros: o exílio, que norteara seu livro “Írisz: as orquídeas”, e a exclusão, mote de “O que os cegos estão sonhando”, narrativa sobre o diário de Lili Jaffe, sua mãe, escrito durante seu confinamento no campo de Auschwitz.
— Nadejda e Óssip foram exilados dentro da própria Rússia. Penso na recente ascensão da direita no mundo, com refugiados impedidos de entrar em outros países ou sendo discriminados onde chegam. Não é muito diferente aqui no Brasil, com perseguição de minorias, mulheres e negros sob um governo preconceituoso. O encontro entre a época do romance e a nossa foi inevitável. No livro, falo do totalitarismo soviético, mas todos se parecem.
Serviço
"O que ela sussurra"
Autora: Noemi Jaffe
Editora: Companhia das Letras
Preço: 49,90
Páginas: 192