Atividades cotidianas como nadar ou proteger-se do sol na rua e momentos especiais como se formar na universidade podem ser carregados de desconforto para pessoas negras, que cada vez mais assumem seus fios cacheados e crespos volumosos ou usam tranças e dreads.
No meio universitário, onde, em 17 anos, cotas aumentaram em 400% a participação dos negros — estima o Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (UnB) — uma necessidade específica desse público virou negócio.
A grife Dendezeiro, em parceria com a agência de marketing GUT e a marca de cosméticos Vult, desenvolveu quatro modelos de capelo (como é chamado aquele chapéu de formatura), capazes de acomodar toda a diversidade dos cabelos afro.
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Com a inovação, pessoas como Ana Caroline dos Santos, biomédica de 30 anos, não precisa mais receber o diploma sem o tradicional acessório. Criada pela mãe diarista e pela tia vendedora no comércio, ela se formou em 2015 numa faculdade particular de São Paulo com muito esforço da família. A formatura significava muito, mas, para ela, foi incompleta:
— Eu já sabia que não conseguiria usar porque na época só usava trança. Então passei a formatura inteira com o capelo na mão. Foi bastante incômodo para mim, era como se estivesse faltando algo. E foi um constrangimento porque na minha turma eu era a única negra. Então fui a única que não usou o capelo.
Essa história levou Ana Caroline a ser convidada pela Dendezeiro para recriar suas fotos de formatura usando um capelo adequado aos seus cabelos, que agora ela mantém naturais, juntamente com outras formadas que viveram a mesma frustração.
'Pertencimento'
Nas fotos, a biomédica usou um modelo com um furo no meio, voltado para pessoas que usam turbante, mas a campanha de marketing traz também fotos de jovens com outros três modelos:
- um que tem pentes-garfos na base para garantir a fixação (adequado para adeptos do black power);
- outro que é inspirado em uma durag (similar a um lenço com amarração na nuca, destinado a pessoas com tranças e dreads);
- e um terceiro com presilhas para cabelos cacheados e crespos
— Quando o capelo encaixou certinho na minha cabeça, eu me senti num lugar de conforto, de pertencimento, onde você pode ser você, e o capelo tem que se encaixar no seu cabelo, não o contrário. Foi como se eu tivesse voltado lá em 2015 e colocado um item importante que ficou pendente na minha formatura. É um grande passo para as pessoas que estão se formando agora — diz Ana Caroline.
Uma das idealizadoras do projeto, Gabriela Barreira, diretora de arte sênior da GUT, diz que o principal objetivo foi mesmo acabar com a ideia de que a pessoa negra é quem tem de se adaptar:
— A gente está sempre dando um jeito de o nosso cabelo caber em algum lugar, e foi pensando nisso que chegamos à questão do capelo, que parecia fácil de solucionar, mas não encontramos soluções sob medida.
De acordo com Hisam Silva, CEO e diretor criativo da Dendezeiro, a marca baiana nasceu com o objetivo de buscar demandas sociais que podem ser resolvidas pela moda:
— A moda nada mais é do que a forma como a gente fala sobre quem a gente é. É importante que produza insumos para que as pessoas consigam se olhar e se sentir representadas.
Com o mesmo propósito, Maurício Delfino criou, em 2018, a marca Da Minha Cor. De uma família formada majoritariamente por empregadas domésticas e faxineiras, ele cresceu vendo sua mãe e tias alisando o cabelo para serem aceitas pelas patroas.
Adulto, resolveu criar algo para ajudar pessoas negras a conviverem melhor com seus cabelos. Começou a pesquisar as demandas entre as mulheres da família e se deu conta da falta de uma touca de natação adequada ao cabelo afro.
— A natação é um esporte que, no Brasil, ainda é visto como coisa para a elite branca. Não existia touca para negros no país e percebi que esse produto começaria a permitir os acessos dos pretos a esse ambiente — diz Delfino, que define seus produtos pensados para a comunidade negra como “inovadores e socialmente inteligentes”.
Em dezembro de 2017, Sofia Dionizio, então com 12 anos, foi a primeira cliente de Delfino. Pouco antes de lançar sua loja on-line, ele fez pesquisas em salões de beleza de tranças e lojas de esporte para apresentar seu produto e conhecer melhor as demandas do seu público-alvo. Conheceu a estudante após ela colocar tranças, poucos dias antes de ser selecionada para um campeonato de natação.
— No lugar em que eu treinava, eu podia treinar sem a touca, só que no campeonato falaram que eu não podia nadar sem ela — conta Sofia, hoje com 19 anos. — Aí foi um caos. Fui na trancista e já cheguei chorando, sem acreditar que teria de tirar as tranças.
Foi então que a profissional de beleza contou que tinha conhecido Delfino e seu negócio iniciante. Cida Dionizio, mãe de Sofia, ligou para ele e salvou as tranças da filha da tesoura.
— Foi uma coincidência muito perfeita. Tínhamos ido a tudo quanto é loja de esportes e não achamos uma touca em que coubesse a trança. Graças a Deus, ela pôde viajar, levando a touca, e ganhou o campeonato — conta a mãe.
Segundo o empresário, além do tamanho maior, o material da touca é mais resistente para sustentar o volume sem que saia da cabeça facilmente na piscina. A inovação acabou chamando a atenção de grandes varejistas do segmento, como Decathlon e Centauro, que passaram a revender as peças.
Em 2020, Delfino também desenvolveu uma linha de toucas para trabalhadores em hospitais. Passou a fornecê-las também para indústrias e supermercados. Um dos clientes corporativos é a rede de fast food Burger King, que compra toucas higiênicas mais confortáveis para seus funcionários com cabelo afro.
A Da Minha Cor já fatura mais de R$ 1 milhão, sendo 40% ainda vindos das toucas de natação, diz Delfino, que também passou a vender outros produtos diversos, como a linha de cosméticos da marca. Em 2021, antes da campanha da Dendezeiro, Maurício também já vendia seu próprio modelo de capelo para cabelos volumosos, que contava com um arco na base.
‘Muda a vida’
Outro negócio que foca no mesmo público é a Kabelera, que surgiu em 2019 com bonés voltados para quem tem cabelos volumosos ou trançados. A ideia veio de Caio Pereira, que precisava usar um boné no trabalho, mas o acessório não comportava todos os seus fios crespos. Resolveu cortar uma parte do chapéu e viu ali um novo produto.
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Thamara Freitas, gestora de RH de 31 anos, é uma das consumidoras dos bonés da marca. Passou a maior parte da vida alisando o cabelo, mas quando engravidou resolveu passar pela transição capilar e usar os fios naturais.
Hoje, ela tem duas filhas, de 7 e 8 anos, e todos em casa têm cabelos grandes e volumosos, inclusive seu marido. Os quatro são skatistas, e os bonés da Kabelera foram a solução perfeita para o esporte ao ar livre.
— Coloco o boné e fico me achando o máximo. E minhas filhas já vão crescer sabendo que há um produto para elas, não vão passar pelo constrangimento de tentar se adaptar a um acessório — diz Thamara. — É como se estivéssemos realmente sendo reconhecidos perante a sociedade, nossas necessidades estão sendo ouvidas. Não é só um boné, isso muda a vida das pessoas.
A Kabelera já tem mais de dez modelos de bonés diferentes, todos com uma abertura generosa na parte de trás e preços que vão de R$ 100 a R$ 180.
Também vende toucas de cetim e de banho para o mesmo público. Caio Pereira diz que suas vendas começaram a crescer na metade de 2023, quando faturou cerca de R$ 100 mil, e o lucro começou a aparecer neste ano.
— Para nós, o principal é o cliente sentir que existem marcas olhando para ele, é uma questão de acolhimento mesmo. Quando a pessoa coloca o boné, a autoestima dela vai lá em cima, ela se sente bonita, potente. E a gente colhe feedbacks praticamente diários com esse tipo de relato — conta o empresário. — Essa questão da representatividade, do empoderamento, é o que nos move.