Os populares “gatos” são os instrumentos de um crime descrito na legislação como furto de energia mediante fraude. A pena para quem o pratica varia de dois a oito anos de prisão, mas o delito deixou de ser um ato esporádico em várias regiões do Rio. Há atualmente 1.712 processos envolvendo crimes com essa tipificação em trâmite no Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), sem considerar casos já julgados ou que estão em recurso em segunda instância.
A análise dos dados processuais por comarcas revela que a maioria desses furtos de energia ocorreu em áreas com forte influência de traficantes e milicianos, que são grupos paramilitares que ocupam áreas e cobram taxas de moradores sob ameaça.
A maior parte dos processos contabilizados pelo TJ-RJ a pedido do GLOBO está concentrada em varas criminais da capital fluminense: 513. Em primeiro vem o Fórum de Jacarepaguá, na Zona Oeste, com 64 casos. Há seis meses, essa região vive uma rotina de tiroteios, com territórios de dez comunidades disputados por milicianos e traficantes. Em parte deles há o histórico de cobranças de taxas ilegais por grupos criminosos.
O pagamento por “gatos” é uma prática que começou nas milícias e foi copiada também pelo tráfico de drogas. Com esse crime vêm outros, como sobretaxa de botijão de gás e sistemas piratas de internet e TV.
A comunidade Gardênia Azul, em Jacarepaguá — onde moram pelo menos 20 mil pessoas, segundo dados do IBGE — é o cenário de um dos inquéritos policiais remetidos à Justiça. Oito suspeitos foram indiciados por espancar um morador da favela, que tem sido disputada por criminosos.
Philip Motta Pereira, o Lesk, que está com a prisão preventiva decretada, e outros sete comparsas são acusados de, na noite de 25 de maio de 2021, tirar o homem de dentro de um imóvel para espancá-lo no meio da rua. Segundo a investigação, a tortura foi um castigo dos criminosos pelo atraso no pagamento de mensalidades à milícia pelo fornecimento de energia desviada da rede de distribuição.
Na região metropolitana, as comarcas de Duque de Caxias, Itaboraí, São Gonçalo e Niterói concentram 308 processos. As duas primeiras cidades têm comunidades com territórios controlados tanto por traficantes quanto por milicianos. Já as duas últimas têm morros e favelas onde a exploração de negócios ilegais é feita por traficantes.
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13 mil áreas sem estado
Uma pesquisa feita pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) com base na análise de 689.933 mil denúncias anônimas sobre tráfico e milícias, entre 2006 e 2021, apontou mais de 13.308 sub-bairros, favelas e conjuntos habitacionais da Região Metropolitana do Rio sob o controle de territórios por grupos armados.
Só na capital, segundo o levantamento divulgado no ano passado, cerca de 36% da população sofrem algum tipo de influência do controle territorial exercido por criminosos.
Daniel Hirata, professor de sociologia e coordenador do Geni/UFF, explica que as milícias exploram o furto de energia em duas modalidades distintas nas comunidades. Em alguns casos, a organização criminosa cobra pelo fornecimento de eletricidade que é desviado da rede pública.
Em outros, estipula uma sobretaxa em cima das ligações legais, valendo-se da capacidade que têm de bloquear o acesso das concessionárias, o que na prática implica pagamento duplo pelos moradores. O tráfico também faz isso, diz Hirata, mas em escala menor:
— O problema das ligações clandestinas é uma constante. A partir da atuação da milícia, houve um aumento de ganho na escala desse mercado ilegal. Boa parte do modelo das milícias está associada à pilhagem da infraestrutura urbana. O furto ocorre quando se puxa energia para áreas controladas por grupos criminosos paramilitares. Ou por áreas em que eles têm construções (nas quais cobram taxas pelo fornecimento de energia a partir de ligações clandestinas). Acontece também a sobretaxação.
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Ricos também fraudam
Apesar de os furtos de energia serem mais comuns em áreas empobrecidas envolvidas pela violência, os “gatos” também estão em casas de classe alta e estabelecimentos comerciais, que são os alvos preferenciais das investigações policiais. No ano passado, a Light estimou que ao menos 3% da energia furtada de sua rede vão para áreas nobres.
Em junho, uma operação da Delegacia de Defesa de Serviços Delegados prendeu em flagrante a moradora de uma residência de luxo na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, por esse crime. O endereço consumia cerca de 2.000kWh por mês, o equivalente na época a R$ 2.400, sem pagar a concessionária.
Para tentar reduzir as perdas, a Light investiu R$ 50 milhões na compra de caixas blindadas, à prova até de bala de fuzil, que protegem sensores que detectam acessos clandestinos. Elas foram instaladas nas regiões com alta incidência de “gatos”, como as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, no Leme, na Zona Sul do Rio, e nas cidades de São João de Meriti, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, na Baixada.
Procurada, a Polícia Civil não quis comentar.