Para tudo acabar em festa na Quarta-feira de Cinzas, um ano inteiro é dedicado aos barracões nas escolas de samba. Os dias e noites transformam os croquis em alegorias e fantasias cercadas de expectativas que, se frustradas, terminam em dor de cabeça ao fim da apuração. Seria azar? Obra do destino? Falha humana? Há ainda quem vá além e saia bradando aos sete ventos sobre uma possível sabotagem à sua agremiação
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— Essa questão de sabotagem aparece volta e meia: é levantada uma hipótese, sempre à boca pequena, nunca uma acusação formal. Principalmente (quando há problemas) com carro, mas é muito difícil de provar, e acaba não tendo muita consequência na reversão do resultado — observa o pesquisador Felipe Ferreira, jurado do Estandarte de Ouro e criador do Centro de Referência do Carnaval.
Desde o princípio do Sambódromo paira no ar o boato de algum boicote. Na estreia da Passarela do Samba, em 1984, foi o sistema de som da avenida o alvo de polêmicas. Uma falha atrapalhou as três primeiras escolas do Grupo 1A (atual Grupo Especial): Unidos da Tijuca, Império da Tijuca e Caprichosos de Pilares. Eduardo Bastos Lemos, então diretor da empresa responsável pelo som da Sapucaí, e que já cuidava desse sistema desde 1977, revelou à época ter encontrado chumaços de algodão com sal grosso e areia nos geradores do carro de som.
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— Existia uma empresa que queria me tirar de qualquer jeito do carnaval porque já fazíamos há alguns anos (desde 1977). O que aconteceu, na verdade, é que jogaram açúcar, técnica usada para travar os geradores que alimentavam as caixas acústicas dos caminhões — conta Eduardo que hoje, aos 78 anos, dedica-se a viajar o mundo de moto.
Eduardo diz que largou a faculdade de engenharia eletrônica para viajar o mundo de moto com o amigo e instrumentista Arnaldo, dos Mutantes, momento em que passou a se interessar pela parte acústica. Sua empresa ficou no carnaval até o início dos anos 2000, além de participar de grandes produções, como o show de Frank Sinatra no Maracanã. No Sambódromo, lembra o ex-diretor, ele ainda sofreu outras sabotagens, como quando jogaram ácido na fonte de luz e quando a torre de som pegou fogo. Nessas outras ocasiões, os desfiles não foram afetados.
— Meu santo é muito forte e, graças a deus, o único problema sério foi na inauguração do Sambódromo, ainda em obras. Foi muito triste, terrível, e começou o carnaval sem som, enquanto eu ainda fazia as instalações — completa Eduardo Bastos Lemos.
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Nos anos seguintes, as reclamantes foram as próprias escolas de samba, como no caso da Mangueira em 1985. Supercampeã no ano anterior, o nono lugar fez com que o carnavalesco Eloy Machado chiasse: para ele, o desfile foi sabotado, com pneus de carros esvaziados e peças das alegorias roubadas antes de entrar na Avenida.
Seja por obra do azar ou do destino, problemas também deram pano para manga na Portela. Em 1992, um apagão antes de a escola de Madureira pisar na Sapucaí foi o motivo para o carnavalesco Silvio Cunha levantar a hipótese de boicote. Já em 2005, depois de o abre-alas ser consumido pelo fogo no barracão na véspera do desfile e três carros terem problemas — inclusive o da águia, símbolo máximo da agremiação, que desfilou sem asas — a diretoria da época afirmou que investigaria se houve sabotagem.
Renato Lage: ‘É seguro de c*’
Ao longo dos carnavais, sempre há quem fique engasgado com um resultado frustrado. No Salgueiro, por exemplo, o desfile de 2011 (“O Rio no cinema”) é lembrado por muitos como um episódio em que "algo estranho pode ter acontecido". Segundo a presidente da velha-guarda da escola, Caboquinha, problemas com o carro alegórico que tinha o King Kong agarrado ao relógio da Central do Brasil são lembrados até hoje.
— Acredito que exista sabotagem, sim, principalmente no carro do King Kong. Ele tinha que fazer um barulho na hora do desfile, mas não fez. Só que, no sábado das campeãs, ele fez. Naquele dia, até falei para ele (escultura do macaco): “Agora que você faz um negócio desses?” — lembra com bom-humor a baluarte, de 84 anos, uma das fundadoras da agremiação. — O comentário foi que a pessoa programada para acompanhar o carro não estava no lugar na hora do desfile.
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Apesar de haver suspeitas à boca miúda, o carnavalesco Renato Lage (que estava no Salgueiro no ano do King Kong, e na Grande Rio quando o carro do desfile que homenageava o apresentador Chacrinha não entrou na Avenida, em 2018) diz que não existe sabotagem no carnaval.
— Sabotagem é seguro de c*, de quem não quer assumir incompetência. Não vejo isso e nunca achei que tivesse acontecido (boicote) em meus desfiles — crava Lage, que atribui os problemas a erros mecânicos, de manutenção ou irresponsabilidade de alguém.
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Coisa do ‘Sobrenatural de Almeida’, diz Louzada
Já Alexandre Louzada, carnavalesco da Unidos da Tijuca que traz na bagagem quase 40 carnavais, lembra de acontecimentos que atribui “ao Sobrenatural de Almeida”, já que também não acredita em sabotagem.
— Na Portela em 2014, o pneu do tripé da Rádio Nacional saiu do barracão e furou no trajeto (à Sapucaí). Trouxemos de volta e consertamos. Já na concentração, furou novamente. O pneu foi trocado e, na hora de entrar (no desfile), furou de novo — lembra Louzada, que viu o tripé fora do desfile, algo que considera “um diferencial” no resultado daquele ano, em que a escola ficou em terceiro lugar.
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Nesse mesmo ano, outro episódio ocorreu no pré-carnaval: o sistema de incêndio do barracão foi acionado, sem explicação, e todas as alegorias ficaram molhadas durante a produção. Louzada lembra ainda que, em 2015, um pneu apareceu sobre o carro do golfinho.
Até nos desfiles das campeãs acontecem coisas que podem deixar qualquer desavisado boquiaberto. Em 2020, a Viradouro, que ganhou o carnaval com enredo sobre as lavadeiras do Itapuã, perdeu pontos com o último carro, que cruzou a Avenida apagado. Segundo o carnavalesco Tarcísio Zanon, a equipe recebeu um aviso espiritual prévio de que deveria ficar atenta com aquela alegoria. Mesmo sagrada campeã, o problema surgiu no barracão: o veículo pegou fogo e as chamas se alastraram até o terceiro andar.
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Vida difícil para as rainhas
No meio das rainhas, a realidade é outra. Em 2022, após a fantasia da então princesa de bateria do Paraíso do Tuiuti, Mayara Lima, arrebentar, seu marido, Renan Marins, mandou investigar o que aconteceu, sem ligar o assunto a uma possível sabotagem. Realidade diferente da vivida pela atriz Grazi Massafera quando estreou como rainha de bateria da Grande Rio, em 2007. Ela caiu na Avenida e, depois, disse que alguém cortou suas sandálias. Em entrevista ao programa “Saia Justa”, do GNT, em 2022, ela revelou saber quem foi o responsável pelo boicote. Disse que perdoou a pessoa e manteve sigilo sobre sua identidade:
— Foi passado um estilete nas duas (sandálias), o que as deixou a ponto de arrebentar. Me falaram: “toma cuidado que, no carnaval, tem muita gente traiçoeira". Mas eu vim do meio de miss e nunca tinha passado por isso.