Um importante patrimônio histórico do Rio, antes inacessível ao público, está, pela primeira vez, de portas abertas. A Capela da Nossa Senhora da Cabeça é uma das primeiras da cidade, e foi construída em 1603, dentro do antigo Engenho Del Rey, no Jardim Botânico. Até o próximo domingo, pode ser finalmente desbravada por cariocas e visitantes. Isso porque o Morar Mais, uma mostra de arquitetura, design e decoração, está ocupando as salas do casarão colonial de 1924, que fica no mesmo terreno da capela, e onde funciona hoje a creche-escola Casa Maternal Mello Mattos.
Toda a propriedade tem 45 mil metros quadrados de extensa área verde e muita história, numa época em que o bairro da Gávea não tinha nem meia-dúzia de ruas. Há 400 anos, a região do engenho, onde era cultivada a cana-de-açúcar, se estendia por toda a área entre a Lagoa e as encostas do Corcovado, da Gávea até o Humaitá.
Na parte mais alta do terreno, atrás do casarão, uma das mais antigas construções do Rio se esconde, quase como um segredo: a Capela da Nossa Senhora da Cabeça foi erguida no século XVII e servia de templo particular para o dono da propriedade, o então governador Martim Correia. Diz-se que um dos familiares dele trouxe de Portugal a imagem de Nossa Senhora da Cabeça.
— A escultura de Maria com Jesus no colo e no outro braço, uma cabeça, foi feita em madeira e gesso. O piso, os portais em pedra, os ferros das janelas são os mesmos, pouco sofreram alteração. Mas a capela já passou por três grandes restaurações: em 1856, em 1902 e 1943, com muita influência da arte barroca no século XIX — explica o arquiteto e historiador Chico Vartulli, que realiza as visitas guiadas.
Reza a lenda que Santo Eufrásio, primeiro bispo da cidade de Andújar, no sul da Espanha, recebeu das mãos de São Pedro uma escultura de cedro da Virgem, feita por São Lucas, e mandou construir um santuário para abrigar a estátua. Durante a conquista do sul da Espanha pelos muçulmanos, no entanto, o povo escondeu a imagem em uma gruta do Monte da Cabeça. Só em agosto de 1227, que um homem chamado Juan Alonso de Rivas, que perdeu um braço em uma batalha, descobriu a escultura. A Virgem Maria, então, devolveu-lhe o braço, e o milagre gerou a devoção à Nossa Senhora da Cabeça.
Curiosa pelo bairro onde foi nascida e criada, a administradora de empresas Anna Paola de Menezes, ficou intrigada quando soube que o casarão e a capela estariam abertos ao público.
— Eu morei no Jardim Botânico desde que eu nasci até os meus 30 anos, quando me casei. Eu não conhecia nem a casa nem a capela. Quando eu soube que estaria aberto, decidi visitar e conhecer — conta Anna Paola, enquanto esperava pela visita guiada, no mesmo grupo de Luiz Autran e a esposa Ilza:
— Todo ano eu e minha esposa vamos ao Morar Mais. Nós estivemos aqui em 1980, quando ainda era um orfanato. Viemos revisitá-la agora, 40 anos depois e gostamos muito — disse o engenheiro Luiz Autran, de 78 anos, morador da Gávea.
Onde história e arquitetura se encontram
O casarão principal, que hoje funciona como uma creche-escola para crianças em situação de vulnerabilidade social, foi construído em 1924, e idealizado por José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, primeiro Juiz de Menores da América Latina. Em sua homenagem, a casa recebeu os dois últimos sobrenomes.
É nos 40 cômodos do imóvel que 53 arquitetos montaram ambientes decorados, entre suítes, quartos, salas, miniapartamentos, banheiros, adega, cozinha, capela e áreas de convivência. Para manter a rotina dos estudantes, as salas de aula foram transferidas para outros espaços da propriedade.
Para receber o evento, o casarão foi devidamente adaptado e precisou passar por algumas reformas e decoração que vão ficar de herança: um banheiro coletivo e uma cozinha totalmente equipados, pintura de todos os ambientes, incluindo a fachada do casarão, reparo da rede elétrica e troca dos revestimentos. O parquinho, área de lazer da escola, ganhou novos brinquedos — destaque para o tabuleiro de xadrez gigante, que coloca os estudantes literalmente dentro do jogo.
Em busca de se manter atualizada com as tendências de mercado, a arquiteta Sonia Bruhn, de 65 anos, acompanha o Morar Mais há alguns anos. Logo na entrada, um painel decorativo chamou a atenção dela e da amiga, com quem foi ao evento.
— A arquitetura da casa, em si, já é bem interessante, colonial. É bacana ver como os projetos se adaptaram ao espaço de forma criativa. Uma composição que gostamos foi um painel decorativo com fundo azul marinho e sousplats e jogos americanos em palha — disse Sonia Bruhn.
A edição deste ano é comemorativa dos 20 anos do evento, criado em 2004 por Ligia e Sabrina Schuback, justamente com a proposta de colocar na vitrine ideias democráticas de decoração, com inspirações reais e acessíveis. Segundo as organizadoras, o evento deve ocupar a Casa Mello Mattos por mais quatro edições.
— O casarão tem características típicas da arquitetura colonial brasileira, e funciona como uma escola que vive à base de doações. Um dos pilares do Morar Mais é o trabalho social. Esta conexão não aconteceu à toa. Entramos para ficar por cinco anos, esta edição e mais quatro. A ideia é ir fazendo aos poucos as melhorias. Olhando o lado da sustentabilidade, sempre evitamos o quebra-quebra e o casarão também veio de encontro a isso. A Capela Nossa Senhora da Cabeça será o próximo passo — adiantou Lígia Schuback.
Morar Mais Rio 2023
Data: 19 de outubro a 26 de novembro
Horário de funcionamento: terça, quarta, quinta e domingo – 12h às 20h/ sexta e sábado – 12h às 21h.
Local: Casa Maternal Mello Mattos, Rua Faro 80, Jardim Botânico.
Estacionamento no local sujeito à lotação (sugere-se o uso de táxi e carros de aplicativos).
Ingressos: terça-feira — R$35, de quarta-feira a domingo — R$50
Ingressos solidários: 50% de desconto na entrega de um item de higiene pessoal ou 1kg de alimento não-perecível
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