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Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro


'O iluminado': filme de Stanley Kubrick está entre as obras que Mark Fisher diz serem inspiradas pela nostalgia do que poderia ter sido e não foi — Foto: Reprodução
'O iluminado': filme de Stanley Kubrick está entre as obras que Mark Fisher diz serem inspiradas pela nostalgia do que poderia ter sido e não foi — Foto: Reprodução

Desde o título, “Fantasmas da minha vida” promete um caráter pessoal, quase confessional, como se o leitor fosse convidado a uma viagem ao redor do umbigo do pensador e crítico Mark Fisher (1968-2017). Seria um engano: mesmo a depressão, abordada e sofrida pelo autor, é vista neste livro de ensaios como sintoma de um mal-estar coletivo e histórico — político, portanto.

Com “Fantasmas da minha vida”, a Autonomia Literária segue em sua campanha de apresentar Mark Fisher ao público brasileiro, para além do nicho virtual onde o inglês já é conhecido. A iniciativa da editora começou em 2020 com o lançamento do grande hit de Fisher, “Realismo capitalista”, de apelo militante mais claro, ao contrário desta obra de teor mais reflexivo, mas não menos contundente.

No seu arranjo, o livro lembra um álbum musical. Suas resenhas de filmes, séries e discos tratam de objetos muito diferentes, por vezes até discrepantes, e vêm de fontes muito diversas (posts num blog, revistas, textos inéditos). Mas há um conceito que amarra os textos, dando-lhes unidade: a “assombrologia”.

Amanhã sonhado ontem

Inspirado na leitura de Marx feita por Jacques Derrida, o conceito tenta descrever uma sensação meio fantasmagórica que permearia a cultura atual. Incapazes de produzir obras novas que captem os impasses de hoje, os artistas se voltam para trás, ou melhor, para um futuro (de abundância, solidariedade, plenitude) que o passado imaginou, mas não pôde concretizar. São estas possibilidades perdidas — abatidas pela virada neoliberal dos anos 1980, segundo Fisher — que nos assombram, assim como o espectro do comunismo rondava a Europa no célebre manifesto.

Ainda que tenha sua raiz em referências acadêmicas, a “assombrologia” de Fisher é aplicada à cultura pop. O autor encontra em artistas como Stanley Kubrick (“O iluminado”), Christopher Nolan (“Inception”), Kanye West (“808s & Heartbreaks”) e a banda Joy Division os exemplos mais pertinentes de seus argumentos, que evitam assim a aridez — mas também a precisão — da análise estritamente teórica.

Talvez um dos grandes trunfos do livro esteja nesse ecletismo do pensamento, na mescla de “alta” e “baixa” cultura para iluminar e criticar aspectos da vida contemporânea. Fisher aproveita ideias de Fredric Jameson e Franco Berardi com a mesma naturalidade e clareza com que escreve sobre músicos como Burial ou Tricky. É seu jeito de buscar o ideal que o formou nos anos 1970 e 1980, numa cultura britânica de séries de TV ousadas e de discussão vibrante na imprensa musical: uma aliança entre a exigência estética e intelectual e a difusão em massa. Ou, nas palavras do próprio Fisher, um “modernismo popular”.

Para inglês ver, ouvir e ler

No entanto, “Fantasmas da minha vida” também revela problemas, ou pontos cegos, que ficam ainda mais evidentes se lidos aqui no Brasil. Como já apontou o filósofo Rafael Saldanha, Fisher às vezes é de um provincianismo exasperante: ele quase não sai do circuito anglo-americano.

Isso fica óbvio não só nos objetos culturais de que trata, como também no chão histórico em que se baseia. Seus textos dão a impressão de que nada de relevante aconteceu fora da Inglaterra. Para Fisher, a alternância de primeiros-ministros ou de climas culturais no país de Elizabeth II parece refletir bem o estado do mundo. O livro até cita Paul Gilroy, autor de “O Atlântico Negro”, que articulou de modo brilhante a cultura negra americana, africana e inglesa, mas isso não vai muito além da superfície. Não altera a perspectiva de Fisher de modo relevante.

'Fantasmas da minha vida', livro de Mark Fisher — Foto: Divulgação
'Fantasmas da minha vida', livro de Mark Fisher — Foto: Divulgação

O que é uma pena — para o próprio Fisher. Afinal, vários dos conceitos de “Fantasmas da minha vida” poderiam conversar de modo interessante com o processo histórico violento e acidentado do Sul global, onde proliferam as possibilidades perdidas. A começar pelo Brasil.

Não se poderia dizer, por exemplo, que aqui a “assombrologia” teve uma encarnação precoce, muito antes de se esboçar na Inglaterra? No mínimo desde o golpe de 1964, que interrompeu com tortura e assassinato a efervescência de fins dos anos 1950 (a bossa nova, a seleção campeã em 1958, o método Paulo Freire e a mobilização das lutas populares), o Brasil tem uma noção da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”, nas palavras de Manuel Bandeira, outro exemplo de uma possível “assombrologia” avant la lettre.

De todo modo, talvez “Fantasmas da minha vida” valha principalmente como provocação ou desafio. Da mesma forma que questionam o caráter apenas individual da depressão e do mal-estar, mostrando o impacto que têm de decisões coletivas, as ideias de Fisher são um bom ponto de partida para interrogar o presente. Para discernir, mais que os fantasmas de cada um, os de todos nós.

Henrique Balbi é escritor e professor de literatura, mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira na USP

“Fantamas da minha vida”.
Autora: Mark Fisher. Tradução: Guilherme Ziggy. Páginas: 288. Preço: R$ 64. Cotação: muito bom.

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