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Em conhecido ensaio sobre a literatura policial, Tzvetan Todorov aponta que um dos méritos do romance noir, nos anos 1930 e 1940, foi tirar a imunidade do protagonista: “tudo é possível, e o detetive põe em risco sua saúde e até sua vida”. Assim, este se integraria ao “universo das outras personagens, em vez de ser um observador independente, como é o leitor”. Saíam de cena os jogos de salão propostos por Agatha Christie e entravam as ruas, a cidade, a contaminação cotidiana.

Essa tradição se espalhou pela literatura ocidental, em maior ou menor intensidade, em uma série de romances com tendência ao estilo episódico. O modelo, também chamado de procedural ou processual, acabou sendo aditivado no fim do século passado pelos nórdicos e seus países com baixíssimas taxas de homicídio — que dirá serial killers. A publicação de “Assassinos sem rosto”, em 1991, fez do sueco Henning Mankell figura de proa de uma geração que soube buscar no policial o ambiente perfeito para tratar de temas como imigração, gênero e a crise do Ocidente.

Seguindo a trilha dos criadores do noir nórdico, seus conterrâneos Sjöwall e Wahlöö, a série protagonizada pelo inspetor Kurt Wallander alçou Mankell ao posto de best-seller, e arrastou consigo a bandeira do scandi crime, que teria no norueguês Jo Nesbø e no sueco Stieg Larsson alguns de seus nomes mais fortes.

Descoberto pelo agente de Mankell e autor de uma série de sucesso protagonizada pelo detetive Ari Thor, o islandês Ragnar Jónasson bebe explicitamente desse filão que privilegia a sobriedade. Em linhas gerais, “A escuridão” inicia uma trilogia tentando dar conta de uma das grandes marcas do policial nórdico: a miséria da existência — afinal, quando surge nesses livros, a morte carrega menos as perguntas do jogo do assassinato (quem matou, por que matou) que as do jogo da vida (como lidar, como seguir adiante etc.).

Jónasson incute em Hulda Hermannsdóttir, protagonista de “A escuridão”, as características de Wallander, Harry Hole e Lisbeth Salander — os dois últimos, criações de Nesbø e Larsson, respectivamente —, nem sempre com sucesso. Quando o livro começa, a detetive-inspetora tem 64 anos e é viúva. Também há algo nebuloso envolvendo sua filha. Convocada ao escritório do chefe, descobre que tem duas semanas até se aposentar — será substituída por um rapaz, “um verdadeiro achado”. Como consolação, recebe a oportunidade de reabrir algum caso arquivado.

Prostituição

Em meio ao início de relacionamento com Pétur, médico também viúvo, Hulda se volta para o ano anterior, quando uma jovem russa foi encontrada morta. Investigado com “falta de entusiasmo” por um colega, o caso foi fechado como suicídio e “gritava para ser reaberto”. Hulda luta em um sistema que tenta achatá-la o tempo todo, sendo muitas vezes obrigada a trabalhar sozinha por rejeição dos colegas — não só é mulher como é ultrapassada. Soa perfeito que encerre sua carreira, portanto, querendo ir até o fim em uma história que envolve o sumiço de outra jovem e a imigração na Islândia, marcada pelo fantasma da prostituição e da violência.

Mas há dois problemas. O primeiro, na conta da edição brasileira. O cotejo com a edição inglesa, da qual se originou, mostra como em português o texto ganhou um tom mecânico, de relatório. Os inúmeros erros de revisão não ajudam — e ao longo das 288 páginas, em vez de se ocultarem, os pronomes em inglês viram uma profusão de “ela” que trava a leitura. Não se trata de estilo.

O segundo — e maior — problema de “A escuridão” é estrutural. Embora a ideia seja boa, o enredo se acomoda no formato procedural. Da forma como é construída, a história de Hulda só funcionaria se a aposta na arquitetura narrativa fosse bem executada. Jónasson, expoente do policial islandês junto a Arnaldur Indridason, opta pelo conhecido esquema de tramas correndo em paralelo — a principal delas sendo um assassinato — , mas a confluência, ao contrário do esperado, não causa impacto.

Conforme nos aproximamos das últimas páginas, empilha-se uma série de revelações cujo efeito se assemelha a pólvora encharcada. O passado de Hulda, supostamente importante, é construído de forma bamba, a estratégia de narrar sua infância é desgastada, e apenas o diálogo com Pétur, repetitivo, já seria o bastante. A morte da garota russa ocupa de modo raso a outra grande linha mestra do romance, e necessitaria de maior impacto nas páginas finais para justificar a estrutura.

Por fim, o epílogo é algo constrangedor e desnecessário, e amortiza o fecho pretendido. O resultado é um romance que, se não é inteiramente ruim — graças a algum carisma de Hulda, cujas motivações são convincentes — , não escapa da regularidade habitual do gênero, e fica distante da prateleira em que estão Mankell, Larsson e Nesbø.

"A escuridão", de Ragnar Jónasson — Foto: Divulgação
"A escuridão", de Ragnar Jónasson — Foto: Divulgação

'A escuridão'

  • Autor: Ragnar Jónasson.
  • Tradução: Isabela Figueira.
  • Editora: Rua do Sabão.
  • Páginas: 286.
  • Preço: R$ 60.

Mateus Baldi é escritora e jornalista. Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio), é autora de “Formigas no paraíso”

*Especial para O GLOBO

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