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Por Bolívar Torres


 Franz Kafka: lançada em 2006 na Alemanha. nova biografia chega agora ao Brasil — Foto: Reprodução
Franz Kafka: lançada em 2006 na Alemanha. nova biografia chega agora ao Brasil — Foto: Reprodução

Lançado em 2006 na Alemanha, “Kafka: os anos decisivos” chega agora ao Brasil. Conhecido por seu rigor e sua atenção aos detalhes, o biógrafo Reiner Stach dividiu seu projeto em três volumes, mas sem seguir a ordem cronológica. Este primeiro volume começa em 1910, na noite em que o cometa Halley passa por Praga. Kafka tinha 27 anos, já estava empregado em uma empresa de seguros e se preparava para escrever suas primeiras obras-primas (que só seriam publicadas após a sua morte). O livro vai até 1915.

Outros dois volumes já foram publicados lá fora e também chegarão aqui — um com os últimos e outro com os primeiros anos de vida do autor tcheco. Stach deixou a infância e juventude para o final pela falta de matéria-prima sobre esse período de sua vida. Ele esperava que, até lá, o espólio de Max Brod, que continha documentos inéditos de Kafka, fosse liberado para pesquisadores. Mas não deu tempo. Por causa de imbróglios legais, o arquivo do amigo e testamenteiro de Kafka só ficou acessível após o biógrafo encerrar sua trilogia. Stach conversou com o GLOBO por e-mail.

O estilo de Kafka até hoje não soa ultrapassado. De onde vem essa modernidade?

Kafka escreve em uma linguagem muito clara, “clássica”, com um vocabulário relativamente pequeno e com frases que não são particularmente complexas. Ele dispensa completamente enfeites e ornamentos linguísticos. Tudo parece transparente e fácil de entender à primeira vista. Percebemos essa clareza como moderna. Mas parte de sua modernidade vem do fato de que essa clareza é enganosa.

Quais são os mal-entendidos sobre Kafka que ainda permanecem em nosso imaginário?

Ainda havia muitos preconceitos sobre Kafka quando comecei minha pesquisa. Preconceitos há muito refutados na década de 1990, mas que foram, mesmo assim, passando de geração em geração. Claro que é verdade que ele teve relativamente poucos leitores durante sua vida, mas isso não foi porque sua qualidade não foi reconhecida, mas simplesmente porque publicou tão pouco. O mais absurdo preconceito, porém, era o de Kafka como um homem que seguia apenas seus devaneios, ou seja, pouco tinha a ver com política, economia e mentalidade de seu tempo, nem se interessava por essas coisas. Mas poderia tal autor narcisista realmente se tornar o escritor mais influente do século XX, um dos fundadores da literatura moderna? Claro que não. Descrevi em detalhes o quão bem Kafka estava informado sobre seu tempo.

Este segundo volume é cheio de momentos engraçados. É curioso que muita gente ainda não reconheça o humor de Kafka....

É outro preconceito, o de que Kafka só teria escrito textos sombrios ou cruéis. Há muitas cenas cômicas em suas obras, até de palhaçada pura. Um leitor que lê “A metamorfose” pela primeira vez ficará horrorizado logo nas primeiras linhas com a ideia de que um ser humano se transformou em um inseto gigante. Mas, logo depois disso, ele vai rir quando ler que o homem transformado quer ir trabalhar como de costume neste estado. Essa proximidade da tragédia e da comédia é uma das características da modernidade. Você a encontra muito pronunciada também em Beckett, a quem eu chamaria de o herdeiro mais importante de Kafka. O senso de humor de Kafka também é muito pronunciado em suas cartas e diários. Eis a piada favorita de Kafka: um mendigo está sentado na rua, uma senhora rica passa. O mendigo diz: “Madame, eu não como há três dias.” A senhora olha com pena para o mendigo e responde: “Você deve se forçar mais!”

Reiner Stach, biógrafo de Kafka — Foto: Divulgação
Reiner Stach, biógrafo de Kafka — Foto: Divulgação

Qual era a importância do vegetarianismo na vida de Kafka? E por que há tantos animais em suas obras?

Kafka via os animais como seres sofredores, embora essa provavelmente não fosse a razão mais importante para seu vegetarianismo. No entanto, Kafka também compreendeu muito cedo que os animais são metáforas férteis extraordinárias. Eles nos observam, às vezes até compartilham nosso destino, mas não participam de nossas tristezas. Em algum momento, Kafka disse para si mesmo: essa é exatamente a minha posição em relação às pessoas, moro à margem da comunidade social, mas não sou membro dessa comunidade. A certa altura, ele até escreveu: "Eu não sou um ser humano". Em suas obras, Kafka variou essa ideia muitas vezes, há um número incrível de animais nelas, e a razão para isso é óbvia, você pode encontrá-la em suas cartas e diários.

O que a liberação do espólio de Max Brod, que contém tudo que Kafka deixou, pode trazer de novos aos pesquisadores?

Terminei o último volume em 2014, mas o espólio de Max Brod só ficou disponível em 2019. Eu havia conseguido cópias de três diários inéditos de Brod antes disso, e esse material era muito valioso. Se a totalidade do espólio terá alguma influência em nossa imagem de Kafka é impossível dizer no momento. Mas prefiro pensar que preencherá algumas lacunas factuais. Por exemplo, sabemos muito pouco sobre a vida e os interesses de Kafka como estudante. Provavelmente também aprenderemos mais sobre a posição dos judeus de Praga logo após o colapso da monarquia no final de 1918. Quão ameaçadora era essa situação para eles? O antissemitismo tcheco foi a razão mais importante pela qual Kafka fez planos para emigrar? Isso ainda é uma questão de debate.

O totalitarismo descrito por Kafka parece mais próximo da nossa realidade do século XXI do que a maioria das distopias escritas hoje em dia. Como seus livros ecoam as práticas de poder de hoje, que invadem cada vez mais nossa privacidade?

Este é, de fato, um dos fenômenos mais surpreendentes em suas obras. Claro, é inconcebível que ele pudesse ter antecipado as práticas de vigilância de hoje. Mas ele aparentemente entendeu instintivamente que a destruição da intimidade é uma das formas mais eficazes de exercer o poder.

Como ele mostra isso?

Começa na paternidade. Bater em uma criança — como ainda era comum na época de Kafka — pode apenas despertar sua resistência. No entanto, se a criança sentir um olhar enorme sobre ela, é mais provável que ela se conforme e talvez até perca sua autoestima. Acontece o mesmo no nível social. Quando é criado um extenso arquivo sobre cada pessoa, no qual até mesmo suas conversas são gravadas — como em “O Castelo” — não há como escapar. Essa vigilância completa de hoje nem era possível na época, mas para um burocrata como Kafka era pelo menos concebível. “O castelo” e “O processo” também contêm quadros de uma distopia, embora de forma grotesca.

O que o trabalho de Kafka em uma companhia de seguros o ensinou sobre a dor e a vulnerabilidade humana?

Como funcionário de uma companhia de seguros, ele era responsável pela avaliação do risco de acidentes de trabalho, e também procurou convencer os empresários que eles tinham que fazer algo sobre o alto número de acidentes de trabalho por iniciativa própria. Durante a guerra, ele também teve que cuidar da reabilitação dos feridos graves. Há provas circunstanciais de que ele tratou com essas pessoas de uma forma muito justa e desburocratizada. Isso não me surpreende, porque ele sempre teve uma capacidade extremamente pronunciada para empatia social; suas cartas e diários provam isso de forma impressionante. É por isso que Kafka também era muito popular como conselheiro, tanto com homens quanto com mulheres.

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