‘Gostaram? Tem o axé da Clarice”, diz a atriz Zezé Motta, ao surgir na sala da casa onde mora, no Leme, Zona Sul do Rio de Janeiro. Naquele mesmo apartamento, como avisa a placa na entrada do prédio, “morou Clarice Lispector, de 1966 a 1977”.
Ao abrir as portas de seu lar, Zezé lembra que, quando entrou no espaço pela primeira, teve a sensação de que seria sua casa. Não sabia explicar o porquê. Muito menos que os mesmos metros quadrados haviam abrigado a autora de “A hora da estrela”, um de seus livros preferidos.
Mas algo lhe fez implorar ao corretor que não mostrasse o apartamento a mais ninguém. Quando desceram pelo elevador e ele apontou o tal aviso no hall do edifício, ela entendeu tudo. E lá se vão 12 anos desde que mudou apenas os móveis e as cores das paredes, mas manteve os piso e a disposição dos cômodos. E mais: que convive com lenda criada pelas filhas:
— Qualquer coisa que aconteça, um vento diferente ou algo que caia no chão inesperadamente, as meninas dizem: “Coisas de Clarice”. Toda casa tem uns barulhinhos, né? Aqui tem muitos... — diverte-se Zezé.
Ela está sentada no mesmo jardim de inverno onde Clarice foi clicada na célebre foto de perfil batendo à máquina de escrever. Quem identifica a cena é Luiz Fernando Carvalho. O cineasta também reconhece a parede de madeira da sala, com frestas entre as ripas, onde foram feitas outras imagens da autora.
Carvalho está há anos mergulhado no universo da autora. O resultado emerge agora no filme “A paixão segundo G.H.”, baseado na obra homônima de Clarice, que estreou nos cinemas. Junto com a roteirista Melina Dalboni, o diretor visita a casa que pertenceu à Clarice e hoje é de Zezé.
Foi a poucos quilômetros dali que rodaram o filme. Depois de visitar série de prédios na Avenida Atlântica, o diretor cismou com um determinado apartamento. Não sossegou até que a dona topasse alugá-lo para as filmagens.
Além da busca pela estética 1950, uma coincidência reforçou a certeza de que aquele era “o” lugar. Na visita, a equipe do filme encontrou... uma barata na área de serviço. Como se sabe, é a partir do encontro com o inseto, com que se depara ao entrar no quarto de Janair (vivida por Samira Nancassa, atriz nascida em Guiné Bissau), a empregada que acaba de despedir, que a protagonista do livro — vivida na tela por uma impactante Maria Fernanda Cândido — imerge em reflexões profundas sobre a existência humana.
Ante a barata esmagada pela cintura, G.H. tem uma epifania que a coloca diante da dor do outro. Ela passa, então, a questionar os valores impostos pela sociedade e a refletir sobre a condição da mulher.
No apartamento, havia ainda uma bandeira do Brasil colada na porta do quarto de serviço. Outro sinal, já que a obra põe em xeque o comportamento da elite brasileira. Aspecto sobre o qual Carvalho mete uma lupa, trazendo considerações sobre o apagamento de todo um universo de trabalhadores invisibilizados que oferecem uma vida mais confortável às classes média e alta.
Essas curiosidades são relatadas por Melina Dalboni em “Diário de um filme” (Rocco), livro em que narra o processo criativo do longa. A obra é fruto da necessidade da autora em elaborar o “atravessamento emocional e de memória” que Clarice provocou nela e na equipe do longa. A roteirista saiu transformada.
Sensação parecida estão tendo muitas mulheres que assistem ao filme. Porque a Clarice que escreveu a obra em 1964 dialoga diretamente com a mulher de hoje:
— Embora tenham avançado, as questões do cotidiano da mulher daquele tempo permanecem. Ainda somos encarceradas por máscaras sociais que a sociedade patriarcal nos obriga a vestir. Enfrentamos julgamentos de como devemos nos comportar, o espaço que devemos ocupar. “Quando vai casar? Ter o primeiro filho? E o segundo?” — enumera Melina. — Quando escreveu o romance, Clarice estava recém-separada, com dois filhos. Ela viveu um casamento burocrata e, teoricamente, um romance proibido com um escritor casado.
Como avisa a própria Clarice no início do romance, “esse é um texto para almas já formadas”, para pessoas que já viveram alguma dor. Após ser atravessada por esse desmoronamento avassalador, ela vai, no livro, se desfazendo dos invólucros morais e sociais.
Enquanto isso, reflete sobre o que está acontecendo, narra o que houve a partir dessa experiência e como se colocar em pé de novo. São várias as Clarices que aparecem no texto. Mas chama atenção a mulher que redescobre o próprio prazer. Que percebe que paixão e sexo, dados como “proibidos e imundos”, são na verdade, libertadores.
— Hoje, com a leitura feminista que temos, entendemos de maneira clara que o corpo da mulher e o prazer são um caminho de libertação, de empoderamento, de consciência do espaço que podemos ocupar como quisermos.
Por tudo isso, é meio que impossível sair do filme sem refletir sobre o próprio posicionamento diante vida. Uma sacode que, dificilmente, aconteceria com homens, acredita Carvalho.
— Os homens estão acomodados. Atrasados em relação a essa reflexão sobre o gênero humano, o G.H. Inclusive, reivindico que G.H. não seja o que toda uma tradição crítica procura traduzir como “gênero humano”. Reivindico que seja “a paixão segundo o gênero homem”. Porque é uma grande crítica ao gênero homem, a tudo que cercava Clarice, G.H., o universo literário e artístico no qual ela se debateu radicalmente. É um livro poderoso, de uma mulher poderosa, que desconstrói todas as normas absolutistas constituídas pelo universo do homem.
Pode um homem dirigir um filme feminino?
— Deve! Dizem que precisei acessar meu lado feminino. Acho que foi mais que isso. Tive que ir além do homem. Criticar, questionar essa cultura, as sociedades masculinas e machistas — diz o cineasta. — Uma das camadas do livro é a visão radical que desconstrói o edifício de leis, da cultura hegemônica do masculino que organiza o planeta e nossas relações. Isso está ruindo. É só olhar a quantidade de guerras. Quando falamos do patriarcal, falando do colonialismo e do capitalismo, esses sistemas em crise criados por homens. O livro precisa ser acessado por todos. Precisa interessar, sobretudo, aos homens.
Como a obra, o filme não oferece conclusão sobre as indagações que levanta. Ao contar sua história, Clarice nos convida a trocar com nossa própria experiência. É assistir e levar para a vida.
— É o que me interessa. Não tenho nenhum desejo de que o filme tenha a ideia de que está pronto. Eu o deixo em aberto para que termine em diálogo com as pessoas que assistem.
Inclusive, nem depois de finalizá-lo Carvalho ficou satisfeito. Quando começou a exibi-lo em festivais, e o retorno era de gente emocionada com determinada “passagem romântica”, o diretor ficou incomodado. Voltou à montagem e mexeu no corte final.
— Incluí sequência que imaginei já estar implícita. Queria que aquilo fosse revolucionário, libertador e não que estivesse ligado a um modelo de conforto do feminino a partir da presença de um homem. Mas, sim, dela com ela mesma. Não era para pensarem que voltou com ninguém! Então, botei ela mais feliz, radical e sozinha por opção.