André Clark, vice-presidente sênior da Siemens Energy para a América Latina, é um duro crítico dos subsídios que persistem no país à geração distribuída (GD), quando o consumidor pode gerar parte da sua energia, o que ocorre principalmente por meio de painéis solares.
Na GD, há descontos no uso dos sistemas de transmissão, mesmo esses consumidores usando as redes das distribuidoras de energia elétrica.
- Transformação à luz do sol: como a Arábia Saudita investe em energia solar para um futuro sem petróleo
- Negócios: Investimentos em energia limpa chegam a R$ 40 bi no país
Em entrevista ao GLOBO, o principal executivo do braço de energia da multinacional alemã nesta região do planeta, afirma que a base do modelo econômico do setor elétrico no Brasil “está prestes a cair” porque os incentivos à GD no atual cenário estão tirando recursos das distribuidoras, que são a base de arrecadação de todo o setor elétrico e vivem um momento ruim, com queixas de consumidores sobre a vulnerabilidade das redes a fenômenos climáticos.
Para ele, subsídios mantêm distorções no sistema em meio à abertura no sentido do mercado livre, onde o consumidor pode escolher de quem comprar a energia. A Siemens Energy é uma das líderes mundiais em tecnologia energética, nas áreas de energia elétrica, petróleo e gás. No Brasil, são quase 3 mil empregados e participações em projetos como a Gás Natural Açu (GNA), no Rio.
O que deve ser prioridade na agenda de transição energética no Brasil?
Nós estamos vendo pelo mundo a descoberta de que, sem Estado, não haverá transição energética. E é por dinheiro? Não, é por mudança nas regras do jogo. Por exemplo, o papel da distribuidora de eletricidade no sistema elétrico brasileiro tem que mudar completamente. Isso é uma mudança de regramento.
Deveria ser qual?
Deve ser cuidar do fio. Do poste, do transformador. Do ativo. Vender e comprar energia tem de ser outra perspectiva. O foco estava exclusivamente na tarifa energética da distribuidora, e isso está sendo absolutamente corroído pela geração distribuída. A separação do que é comercialização de energia do que é a infraestrutura que atende a população tem de ser muito claramente colocada. O futuro é: na sua casa, você compra energia de quem quiser. Precisa de uma distribuidora que esteja garantindo que o fio ligue sua casa ao transformador, o transformador à rede, que esteja lá, bem cuidado, resiliente.
Seriam duas empresas diferentes?
Completamente diferentes. A conta vem separada: o fio e a energia. Mas isso enseja um risco muito importante: o populismo energético. Uma das maiores ameaças no mundo e também no Brasil, não importa o espectro.
Por exemplo?
Baixar tarifas na marra, baixar preço de gasolina na marra. Tentou-se isso em todos os lugares do mundo, não deu certo em nenhum. Nós temos jogos de populismo energético navegando dentro do Congresso Nacional hoje, tirando o poder das agências reguladoras, do planejador de longo prazo.
Qual é a preocupação?
O lobby da geração distribuída. Ele é mortal, é o Robin Hood ao contrário. Você rouba do pobre para dar para o rico. Isso é um engodo. É um perigo.
Por quê?
Está dando e garantindo subsídios a uma tecnologia que não precisa mais deles. Esse subsídio está fazendo com que a tarifa doméstica de todos nós esteja batendo recorde, enquanto o custo da energia cai. O Brasil é o país da energia barata e da tarifa altíssima por causa desses subsídios. A GD corrói a base sobre a qual a regulação elétrica brasileira foi criada. A base é a distribuidora. Se a base desaba — e está desabando, em grande medida pela corrosão dos subsídios da GD — cai o sistema inteiro. A governança inteira do sistema está comprometida. Isso é um perigo econômico sem precedentes no momento em que se espera que o Brasil seja um ícone verde. A base desse modelo está prestes a cair.
Então, qual deve ser o papel da distribuidora?
Manter a luz acesa, não vender energia. O aplicativo do seu banco vai te oferecer energia. Se a gente não transcender isso, nós vamos ter que lidar com uma crise institucional do sistema energético brasileiro antes de nos projetarmos para o planeta como solução global da economia verde.
Mas, do ponto de vista da empresa, a energia solar não interessa?
A transição energética brasileira nos interessa profundamente. Estamos investindo na rede, nos transformadores, nos parques solares, eólicos, gás. A questão não é essa, é regulatória. A gente está profundamente preocupado com a sustentabilidade desse modelo econômico. A política pública de GD teve seu papel, mas deveria ter acabado há cinco anos. E ela continua prosperando.
Como discutir essas questões no Congresso?
Tenho uma crítica à representação empresarial brasileira do setor energético. Deve ter umas 36 associações de energia. O Congresso fala: “bom, então, se os interesses são diversos, eu vou jogar.” Populismo energético. O que acaba acontecendo? São rumos direcionais muito perigosos. É o momento de o setor empresarial também se unir e deixar os interesses de fontes e específicos de lado, porque o modelo todo está sob risco.
O setor de eólica passa por uma crise no Brasil?
Sim. Um pouco no mundo também. Na solar, a cada 2 anos, o custo cai à metade. Essa curva de competitividade afetou a indústria eólica no mundo. As cadeias de valor durante a Covid se atrapalharam todas. O Brasil tem uma sobra estrutural de energia renovável: eólica e, em especial, um tsunami solar, feito em escalas de utilities e também em GD. Hoje nós temos uma sobra estrutural quase do tamanho da nossa demanda de energia.
Qual é a saída?
É exportar. A demanda é gigantesca. Todo mundo está atrás disso. Reputo que essa lacuna de demanda deve durar entre 2 e 4 anos, a depender do que fizeram com o excesso de energia. O resto do mundo quer.
Temos capacidade para fazer exportação?
É possível exportar tanto as peças como os serviços ligados a essa indústria, que são extremamente sofisticados, de engenharia, de montagem, supervisão de drone, de tecnologia de computação. E o Brasil está muito bem colocado. Podemos exportar tudo isso.
- De cana e celulose gerando energia e fertilizantes: Economia circular está em 76% das indústrias
A inteligência artificial (IA) vai impactar o negócio de energia em que medida?
As contas ainda estão sendo feitas, mas um data center de IA consome entre 20 e 50 vezes mais energia que um normal. E essa tecnologia entra em todos os segmentos econômicos que você possa imaginar. Ela é a próxima revolução industrial. Não só pela intensidade energética, que vem de uma escala gigantesca de necessidade de processamento. Essa curva começa a se inflexionar também pela mobilidade elétrica. Nossas operações no Brasil e na América Latina têm sido demandadas de forma estrutural. Esses clientes vão demandar grande parte da expansão, são fortes impulsionadores da demanda de energia verde.
A empresa tem previsão de crescimento no Brasil?
A gente vive talvez o maior momento de prosperidade das últimas três décadas e está com cara de continuar a ser ótimo. É expressivo em capacidade, em gente, em engenharia, em software.
O senhor também é presidente do Conselho da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Qual é a principal demanda a Brasília?
Consideramos que os planos colocados à frente neste início de governo e as coisas que estão sendo reformadas são extremamente positivas, como a Reforma Tributária e o entendimento de que o Brasil é central nas questões climáticas. Isso muda nossa indústria. Começa a emergir a ideia de que a gente é, sim, uma potência verde, que a gente é solução para o planeta.
Temos pedido ao governo articulação entre si, com o Congresso e com o Judiciário. O investimento em infraestrutura é uma riqueza do Brasil, e a gente também pode acomodar poupança de investidores internacionais. O Brasil é uma democracia, que defendeu a sua democracia muito claramente em um mundo em guerra.