Bem-estar
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“Escuto a correria da cidade, que arde / E apressa o dia de amanhã / De madrugada a gente ainda se ama / E a fábrica começa a buzinar / O trânsito contorna a nossa cama, reclama / Do nosso eterno espreguiçar”. “Samba e amor”, de Chico Buarque, foi minha trilha sonora do puerpério (a maternidade e suas ressignificações, não é mesmo?). Ouvia sem parar porque me sentia assim, alheia a todo o resto, à buzina, à fábrica, sem entender o que era dia e o que era noite. Um eterno espreguiçar (ou não dormir).

O puerpério é, na esmagadora maioria das vezes, muito solitário. É fisicamente insano, não apenas pela privação do sono, mas por todo sangue e leite que vazam, pela dor do amamentar, e pelas cicatrizes, físicas e emocionais, do parto. Mas, acima de tudo isso, o puerpério é uma morte simbólica da vida anterior. A mulher que existia até ali morre para que uma nova mulher, agora mãe, volte a nascer. Mas precisamos mesmo abdicar de tudo que mais amamos para renascer? Eu me recusei.

Lembro que minha filha, Madalena, tinha menos de um mês quando “pisou” metaforicamente em seu primeiro bar. Era aniversário de uma grande amiga, o lugar era aberto, ela já tinha tomado as vacinas iniciais. A pediatra liberou a visita desde que ela ficasse apenas no sling, bem grudada em mim (como sempre até então). Fomos. E eu tive algumas horas de reencontro com quem eu era antes dela existir. Aquela euforia típica de um bar, da qual eu tanto sentia falta viver: vozes alteradas, gargalhadas, histórias aumentadas, cervejas (por ora não para mim) e saideiras sem fim. Ela, no seu habitat natural, meu colo, continuava alheia a quase tudo ao redor. Pouco choro, uma parada rápida para amamentar, muito sono. Deu certo.

Daí comecei a me sentir confiante para arriscar mais: afinal, quase um ano daquele teste positivo, quando meu mundo mudou para sempre, eu poderia começar a me reencontrar? Voltei a alguns bares nas semanas seguintes, sempre de dia, no horário da soneca. Um mês depois fui além e ousei ir numa roda de samba. De dia, Madalena de novo no sling, longe da muvuca. Ela dormiu embalada por aqueles mesmos versos de Chico Buarque que embalaram nossas primeiras noites sem dormir. Sucesso?

Claro que os olhares julgadores estavam presentes, quase sempre, especialmente dos mais velhos. De mulheres/mães, hoje talvez também avós, que viveram seus puerpérios trancadas em casa por, no mínimo, três meses, por recomendação dos próprios pediatras — à época, em sua maioria homens. Ou até de mulheres que enfrentaram, elas próprias, julgamentos alheios ou autocensura por se permitirem ousar em tentar continuar ser, ao menos em parte e por algumas horas, quem eram antes de serem mães. Se elas foram julgadas, por que eu também não seria?

E, claro, dos homens. Enquanto os pais voltam rapidamente às suas vidas, profissional, pessoal e socialmente, a mulher recém-mãe vive um parênteses que pode durar meses, anos até. Não cabe nas suas antigas roupas, não cabe nos seus antigos programas, muitas vezes nem nos seus antigos amigos. Os pais não: quase sempre imersos em suas bolhas patriarcais, sem entender a revolução que o maternar é para uma mulher, relegam às mães papéis engessados, que, em nenhum dos casos, inclui uma mulher com sua cria num bar.

Os julgadores e julgadoras sempre estiveram presentes e continuarão. Mas eu me identifiquei com os outros olhares: os de aprovação. Esses me fizeram continuar. E mais: me deram asas. Criei o @maeboemia como uma tentativa de dar vazão à minha nova identidade. Eu era quem sempre fui, boêmia, mas agora era também mãe. E era possível, sim, ser duas ao mesmo tempo (e mais todas as outras coisas que eu sou). O perfil foi criado, inicialmente, com dicas de bares e restaurantes, rodas de samba, shows e eventos para mães (e pais) que queriam continuar sendo quem eram depois da maternidade (paternidade). Eram dicas de lugares para adultos, mas com espaço para as crianças brincarem, e também, melhor dos mundos, com cadeirinha e trocador. Ou simplesmente lugares onde crianças e suas mães fossem bem-vindas — o que, convenhamos, deveria acontecer em qualquer lugar.

Veio nosso primeiro carnaval e eu, animada, fiz uma lista de blocos infantis (ou não) para ir com crianças. Naquele ano, 2019, o post viralizou — foi a primeira vez que meu perfil foi muito compartilhado. Percebi ali uma demanda reprimida: num universo (Instagram) com milhares de perfis sobre maternidade, dicas de programas infantis ou viagens para os pequenos, não havia um sequer que levasse em conta a vontade de uma mãe de conciliar seu maternar com o bar? Com o tempo, entendi que minha página era muito mais que isso: era uma bandeira que eu precisava levantar. Assim como eu me recusei a seguir a cartilha da mãe que a sociedade espera que eu seja, muitas outras mulheres faziam o mesmo: se recusavam a deixar de ser quem elas eram (boêmias, atletas, CEOs, o que mais quiserem) para serem só mães.

Muitos carnavais

Um ano antes, quando ainda estava grávida, eu tinha tido uma experiência muito ruim num carnaval: uma foliã viu minha barriguinha, que eu adorava exibir nas fantasias, e me perguntou sorrindo: “Você está grávida?”. Eu disse que sim e ela respondeu, seca: “Meus pêsames”. Eu fiquei tão desconcertada com aquela inconveniência, para dizer o mínimo, que na hora não consegui reagir. Não fiquei triste ou chateada, simplesmente fiquei sem ação. Depois, passei o resto do bloco pensativa: “O que será que fez uma pessoa que nunca me viu na vida, externar uma opinião dessa maneira tão invasiva?”. Eu poderia não estar feliz estando grávida num bloco, mas eu estava. Será que ela pensava que a minha vida iria mudar para sempre (sim, iria) e aquele seria meu último carnaval (não, jamais)? Como ela poderia saber como seria o meu próximo carnaval, ou como eu seria sendo mãe?

Corta para 2024: 12 blocos, sete com a Madalena, cinco sem ela.

Se eu pudesse dizer apenas uma frase à uma mãe hoje em seu primeiro dia das mães, eu diria: você vai se reencontrar. Pode ser que demore mais do que você espera ou gostaria. Pode ser que a roupa, literal ou não, demore muito a caber de novo. Especialmente nesse início, ser mãe parece ser maior do que tudo que você foi até então. Enxergar a curva numa estrada tão sinuosa quanto é o puerpério pode parecer quase impossível. Mas os dias longos demais acabam e a fábrica volta a buzinar. E, embora nesse momento ser mãe seja quase você por inteiro, você não é só mãe: é a soma das suas experiências. E nenhuma, por mais avassaladora que seja, será definidora por si só da sua personalidade. Um brinde a nós.

*Marina Gonçalves é editora-assistente de Mundo

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