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Por Pâmela Dias — Rio de Janeiro

Desde os 6 anos, a produtora de conteúdo Natália Rosa, hoje com 31, sabia que o corpo em que veio ao mundo não era sua casa. Foi uma sensação que carregou na infância e na adolescência, quando olhava para dentro, e não apenas para o espelho onde, com o passar do tempo, viu o skatista de tênis e boné ou o jovem de gorro, bigode e cavanhaque. Somente aos 24 anos que a Natália nasceu, deu adeus ao João e boas-vindas a um processo contínuo e vitalício. Enfrentou suas dúvidas, seus medos e a dor de uma transição de gênero com a ajuda de hormônios e o olhar dos outros. É outra pessoa, numa pele que costurou, dia a dia, foto a foto.

Sem receio de mostrar sua aparência do passado e enxergando na própria história uma forma de apoiar outras pessoas que vivem realidades semelhantes, a produtora de conteúdo ajuda a difundir o debate sobre as muitas fases físicas experimentadas durante a transição de gênero, em geral vistas como tabu. Para os quase 53 mil seguidores no Instagram e outros milhares no YouTube, Natália expõe seu álbum de vida e conta como foi o misto de emoções que sentiu desde os primeiros passos para ter traços tidos socialmente como femininos, ao afinar a voz, aumentar as mamas, eliminar os pelos da barba e redistribuir a gordura corporal. Ela lembra que, na primeira aplicação de estrogênio — hormônio sexual feminino —, rezou pedindo direcionamento. Entre crises de choro e celebração a cada mudança, que só foi percebida de forma intensa depois de cerca de dois anos, Natália se reencontrou com o próprio corpo. Um mergulho tão profundo que explica por que tantos transexuais preferem não revisitar suas histórias, deixar para trás algumas importantes memórias.

— Adentrei num mundo desconhecido apostando na minha felicidade. Os hormônios na mulher trans cortam a testosterona (hormônio sexual masculino) e injetam estrogênio, que são poderosos na forma de sentir o mundo. Então, tudo era à flor da pele. Tinha sentimentos extremos e não tive a sorte de lidar com bons psicólogos. No primeiro ano, eu quase não saía de casa, por conta de um relacionamento abusivo e medo da rejeição — recorda.

A produtora de conteúdo Natália Rosa iniciou a transição de gênero aos 24 anos — Foto: Divulgação
A produtora de conteúdo Natália Rosa iniciou a transição de gênero aos 24 anos — Foto: Divulgação

Esta segunda etapa da vida de transexuais, que após se entenderem assim precisam se reapresentar à sociedade, é pouco debatida. Resolvidos com eles próprios, eles ainda têm de rever velhos amigos de infância ou parentes com a aparência do novo gênero, escancarado no rosto, nas formas, nas roupas, no jeito de tocar o cabelo e se posicionar no mundo. No Brasil, o processo transexualizador foi instituído no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008, o que garantiu acesso a hormônios, cirurgias de modificação corporal e genital, além do acompanhamento multiprofissional para mulheres trans. Somente em 2013 o programa passou a atender também homens trans e travestis. O SUS ainda não faz procedimentos de feminização facial — cirurgia plástica de afirmação de gênero, realizada recentemente pela ex-BBB Linn da Quebrada.

Dados do Ministério da Saúde mostram que nos últimos nove anos foram realizadas 227 cirurgias de redesignação sexual no país. Entre 2015 e maio deste ano, 22,5 mil usuários realizaram hormonioterapia. Um dos problemas, no entanto, é a longa espera para ter acesso a alguns serviços, especialmente as cirurgias. Atualmente, 17 estabelecimentos de saúde estão habilitados para realizar o processo transexualizador, em apenas 11 estados.

Com tudo que já viveu, Natália sabe que é privilegiada. Ela contou com apoio até quando percebeu que o uso de medicamentos alterava a sua forma de se relacionar sexualmente. A ereção desmorona sob a bomba de estrogênio. Com ajuda de ex-parceiras, a produtora de conteúdo, que é lésbica, foi aprendendo novas formas de sentir prazer.

— Eu não encarei a mudança sexual de forma negativa porque não faço questão da penetração. Mas encontrar outras formas de sentir prazer levou tempo. Quando ainda me apresentava como João, sentia que as mulheres esperavam que eu transasse como um homem. Depois, me senti livre para me redescobrir — diz Natália.

Readequação digna

Segundo o psicólogo e mestre em saúde pública pela USP Michel Furquim, a etapa das mudanças físicas durante a transição de gênero é uma das mais difíceis, pois é o momento em que a pessoa está sujeita a sofrer preconceitos mais escrachados nas ruas, no trabalho e até mesmo dentro de casa. Também há cobranças sociais por um comportamento que se adeque aos estereótipos ditos masculinos ou femininos.

— Um cuidado psicoterapêutico é fundamental para que a pessoa trans ou travesti entenda os processos de mudança corporal, que podem vir acompanhados de quebras de expectativa devido a efeitos colaterais ou simplesmente por gostos estéticos. Além de passar por tudo isso, muitos abandonam as escolas, são expulsos pela família e enfrentam dificuldades financeiras. O abalo emocional pode ser intenso — pontua o psicólogo.

O músico Nathan Ribeiro, de 27 anos, conseguiu iniciar a transição de gênero em 2018, na rede de saúde pública da capital paulista. A primeira aplicação hormonal aconteceu após oito meses de espera por exames junto a um endocrinologista. Segundo ele, apesar de antes da transição já ser “lido” como menino devido à forma de se vestir, tinha medo de ser julgado por não se portar da forma socialmente esperada para um homem.

— Por eu estar desempregado, eu não tive muita interação social no primeiro ano de hormonioterapia, o que aliviou o medo. Lembro que no início suava muito, tinha espinhas e retenção de líquido. Hoje, o que ainda estou aprendendo é como fazer a barba — conta Nathan, que escolheu o novo nome para continuar sendo chamado de Nath, em alusão à Nathália, seu nome de batismo.

Músico, Nathan Ribeiro, de 27 anos, conseguiu iniciar a transição de gênero em 2018 — Foto: Divulgação
Músico, Nathan Ribeiro, de 27 anos, conseguiu iniciar a transição de gênero em 2018 — Foto: Divulgação

Natália e Nathan também têm em comum o fato de que sabem que precisam modular as características. Natália quer ser a mulher real que existe em si, à revelia dos padrões estabelecidos, e Nathan já sabe que a mastectomia, que se prepara para fazer, não vai torná-lo mais homem. Natália conta que aprendeu, nos sete anos de transição, que não precisava usar maquiagem e vestir roupas femininas para ser uma mulher. Mas já fez isso, seguindo a imposição social. Desde o ano passado, ela retomou o estilo skatista e se sente finalmente livre de amarras:

— No começo, eu buscava validação externa, queria que me vissem no estereótipo feminino. Quando entendi que não existe um jeito de ser mulher ou homem, tudo mudou — diz ela.

Homem trans, o multiartista e ativista Théo Souza defende ainda que a mudança de gênero não acontece apenas no âmbito físico. Usando hormônios desde 2016, ele ainda não sabe se quer retirar as mamas e acredita que nenhuma cirurgia assegura uma leitura social masculina ou feminina aos trans e às travestis.

— As mudanças estão mais relacionadas à autoestima. Eu, pessoa trans negra, sofria bullying antes da transição e não me sinto confortável em mostrar meu passado. Criar uma fetichização entre o meu nome e aparência antigos e os novos não me reafirma, pois basta eu me entender como transexual para ser um — conclui o ativista.

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