Na última segunda-feira (13), diante de uma plateia de livreiros no Farol Santander, em São Paulo, a escritora espanhola María Dueñas contou sobre que tipo de personagens gosta de escrever: uma jovem de classe social modesta, ingênua, que vai amadurecendo a cada página, até se tornar uma mulher que enfrenta o destino de cabeça erguida.
De fato, em “O tempo entre costuras”, romance que transformou Dueñas em best-seller em 2009, Sira Quiroga é uma costureira que, às vésperas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), pensava em se casar com um pacato funcionário público, mas se apaixona por Ramiro e foge com ele para o Marrocos. Lá, é abandonada pelo amante... e vida que segue.
Em “Sira”, a continuação de “O tempo entre costuras” (2021), que María veio apresentar ao leitor brasileiro, a Segunda Guerra Mundial já acabou e a protagonista não é mais a costureirinha, e sim uma mulher forte e ambiciosa que se casa com um espião inglês. Mas Dueñas achou que ela poderia amadurecer ainda mais e resolveu “matar” seu marido.
— Nos anos 1940, uma mulher com marido não podia ser independente. Estava ligada a ele. E eu queria que Sira fosse livre, que seguisse seu caminho — justifica Dueñas. — Não queria escrever sobre uma mulher estática.
“Estática” é uma palavra que não combina com os cinco romances históricos de Dueñas. “Sira”, por exemplo, se passa em quatro localidades: Palestina, Reino Unido, Espanha e Marrocos.
Figuras reais
Este mês, Dueñas embarcou em sua primeira turnê de divulgação desde o início da pandemia. Antes de São Paulo, passou por Bogotá e Buenos Aires, onde todos os jornalistas tinham a mesma pergunta: por que ela transformou Eva Perón, a mítica primeira-dama argentina, em personagem de “Sira”?
Sim, no novo livro, a costureira-espiã conhece Evita, que visitou a Espanha em 1947. Arruinada após duas guerras (a civil e a mundial) e isolada internacionalmente devido à ditadura fascista que vigorava por lá, a Espanha precisou recorrer a empréstimos argentinos. O general Francisco Franco tentou aproveitar a visita da “mãe dos descamisados” para fazer propaganda do regime.
— Não podia escrever um romance que se passa na Espanha em 1947 sem falar sobre a visita de Eva Perón, que foi o evento mais importante daquele ano, inclusive para nossa economia. Eram tempos de muita dor, fome e repressão. A visita de Evita foi como um refresco — explica. — Tentei ser muito respeitosa ao representá-la. Por sorte, os argentinos são muito prolíficos e não falta material sobre ela.
Não é a primeira vez que Dueñas escala personagens reais em seus romances — até Carlos Gardel dá as caras em “As filhas do capitão” —, mas poucos tiveram o mesmo destaque que Evita. Ou melhor: de Doña María Eva Duarte. Os jornais, diz Sira, não se atreviam a chamá-la no diminutivo. Já os descamisados espanhóis, gratos pela generosidade da tão bem-vestida primeira-dama argentina, apelidaram-na de “Perona”.
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Novamente a serviço dos britânicos, Sira se disfarça de repórter da BBC para seguir de perto o périplo de Evita pelo país e descobrir como os interesses da ditadura estavam em jogo naquela visita. Sira tem até que lidar com trapalhadas de Juancito, irmão de Evita e “ovelha negra” da comitiva argentina.
Homens muito sinceros
Nesta quinta passagem pelo Brasil, Dueñas se surpreendeu que a maioria das perguntas do público tenha vindo de leitores homens. Ela já reclamou de ser chamada para eventos literários só para cumprir uma “cota feminina” e de ter seus romances tachados de literatura para moças.
— Ainda há homens, inclusive jornalistas e escritores, que têm preconceito contra livros escritos por mulheres. Mas esse preconceito com frequência é vencido. Os leitores homens são muito sinceros. Eles me dizem: “Não tinha nenhuma intenção de ler o seu livro, mas minha filha e minha mulher leram, me disseram que eu ia gostar, então li e adorei” — ri a autora.
Os livros de Dueñas já venderam mais cinco milhões de cópias pelo mundo — 200 mil somente no Brasil.
Ultimamente, no entanto, ela anda trocando a escrita solitária pelas salas de roteiros. Foi contratada pela plataforma de streaming Vix, parceria da mexicana Televisa e da americana Univisión. Dois de seus romances já haviam inspirado séries de TV: “O tempo entre costuras” e “Destino: La Templanza”. Adaptações de “As filhas do capitão” e “Sira” já estão em andamento.
— Tudo mudou muito desde que filmaram “O tempo entre costuras”. Antes, os produtores queriam que nós, escritores, assinássemos o contrato e desaparecêssemos. Não queriam nossa colaboração — diz ela. — Nos últimos anos, com o surgimento de novas plataformas, tudo mudou e somos convidados não só ajudar a adaptar nossos próprios livros, mas também a desenvolver conteúdo original. É muito gratificante que contem conosco. Meu caminho é a literatura, mas escrever roteiros é uma experiência muito rica.