SÃO PAULO - Entrar no apartamento de Adriana Peliano, no Jardim Paulista, Zona Oeste de São Paulo, é uma experiência sensorial ou uma grande brincadeira, dependendo do grau de abstração de quem a visita. A artista plástica, de 41 anos, transformou a maior parte dos cômodos em uma verdadeira “toca do coelho”, portal imaginado por Lewis Carroll há 150 anos para o mergulho de Alice no “País das Maravilhas”.
Quase todos os móveis e estantes são ocupados por livros — cerca de 300 volumes — e colagens de objetos multicoloridos inspirados na personagem do autor britânico e no mundo onírico no qual a menina se aventura. Há até apetrechos nada ortodoxos, aqui e ali, que chamam a atenção dos mais desavisados. Não por acaso, Adriana foi escolhida para ilustrar a edição comemorativa que a editora Zahar lança em julho para celebrar os 150 anos da personagem de Carroll, reunindo em um só volume “Alice no País das Maravilhas” e “Através do espelho”. Ela fez intervenções nos desenhos originais de John Tenniel, ilustrador das primeiras edições dos livros de Carroll.
— Não gosto de ser chamada de especialista em Alice — diz ela, com seu vestido estampado com imagens da personagem na versão imaginada por Tenniel.— Talvez eu prefira “especialice”.
Especialista ou “especialice”, as credenciais de Adriana são incontestáveis quando o assunto é Alice. Em seu currículo, ela tem a meticulosa edição em português do manuscrito que Carroll elaborou para Alice Liddel, “Aventuras de Alice no subterrâneo” (1862-1864), Prêmio Jabuti de projeto gráfico em 2012 — a letra cursiva do autor foi recriada como se Lewis Carroll tivesse escrito em português. E uma dissertação de mestrado intitulada “Através do surrealismo e o que Alice encontrou lá”, com orientação da jornalista Kátia Canton, que mostra a trajetória da obra através dos tempos e como se transformou ou influenciou as artes ao longo desse período.
Nada mal para a presidente da Sociedade Lewis Carroll do Brasil, que fundou em 2009 e tem uma abordagem diferente de outras associações parecidas no exterior.
— A nossa se destaca das outras porque é mais ligada às artes — diz ela. — Como essa obra influenciou as artes e continua a influenciar até hoje. A maior parte das coisas sou eu que faço, inclusive a manutenção de dois blogs.
O primeiro contato com Alice não poderia ter sido mais frugal. Ela conta que, quando era criança, assistia a um desenho da produtora Hanna-Barbera livremente inspirado na personagem.
— Meu padrasto comprou um vídeo Betamax e gravou alguns episódios desse desenho — contou ela. — Eu assisti milhares de vezes e tinha um episódio em especial no qual a Alice caía na toca e encontrava os personagens dos desenhos. Naquela época, não tinha a dimensão do que era o livro.
Essa dimensão veio um pouco mais tarde, aos 9 anos, quando ganhou sua primeira edição de “Alice no País das Maravilhas”, ilustrada por Nicholas Gilbert.
— A Alice era mais angustiada. E eu tinha uma identificação com essa angústia adolescente. Quem sou eu, para onde vou? — diz ela.
Aos 15 anos, ganhou uma edição da Summus, com os dois livros de Carroll: “Alice no País das Maravilhas”, com ilustrações do próprio autor, e “Através do espelho”, com os desenhos clássicos de John Tenniel.
— Acho as ilustrações de Carroll misteriosas e atraentes. Já as de Tenniel me causaram naquele momento um certo desapontamento diante da efervescência criativa que o texto desperta. Hoje, trabalho com elas através de colagens. Elas se tornam intrigantes de novo e me convidam a um novo olhar.
Foi aos 20 anos, no entanto, que tomou a decisão de investir ela mesma em ilustrações, após percorrer uma exposição de imagens de Alice na Biblioteca do Instituto Nacional do Livro.
— É uma das obras mais ilustradas do mundo inteiro — diz ela. — Vi a exposição e me deu um insight, que eu queria ilustrar os livros da Alice. Comecei a estudar, li os livros e sabia de cor trechos inteiros. Comecei a ficar fascinada e a criar ilustrações.
Adriana usa a técnica da assemblage , que consiste em colar objetos e materiais tridimensionais. Ela também rearranja palavras, criando novos significados, como “alicinações”, “amaravilhas” e outras. “Alicinações” por exemplo, é o nome que deu ao que considera seu primeiro grande trabalho: uma série de colagens inspiradas em cada um dos personagens da história. Ela a apresentou na Universidade de Oxford, em 1998, no centenário da morte de Carroll.
— Depois disso, “alicinações” se tornou um conceito mutante, uma “palavra-valise” (que juntam dois ou três vocábulos num só) com a qual persigo a presença de Alice na arte e na cultura de forma mais livre e experimental — conta Adriana.