Foram muito especiais as duas homenagens que Nei Lopes recebeu no carnaval de abril. O Salgueiro pôs sua foto numa das placas dedicadas a grandes salgueirenses. E a Beija-Flor usou obras suas como referências para as fantasias da bateria: o livro de poemas “Poétnica” (2014) para a rainha Raissa de Oliveira e o “Dicionário social do samba” (2015, feito com Luiz Antonio Simas) para os ritmistas. Serviram como presentes pelos 80 anos que o compositor e escritor completa hoje. Apaixonado pela história das escolas de samba, ele diz que “andava muito desesperançado”.
— Fiquei impressionado com a profundidade da homenagem da Beija-Flor. Ela me fez ver que está nascendo um elenco de carnavalescos que são efetivamente transmissores de conhecimento, com enredos seriamente pesquisados, como no caso da Grande Rio. Tive a perspectiva de que as escolas de samba podem desempenhar o papel cultural, educacional e político que sempre esperamos — anima-se.
Adeus, advocacia
Além da agenda cheia pelas celebrações da data redonda, Nei tem visto sua obra e suas ideias serem mais aceitas no meio acadêmico. Sambista que largou cedo a vida de advogado e que não construiu carreira nas universidades, passou muito tempo sem ser levado a sério.
— O reconhecimento que eu estou começando a ter agora vem, sobretudo, de excelentes estudantes e professores beneficiados pela política das “cotas” — acredita ele, pondo aspas na palavra mais usada para se falar das políticas de ações afirmativas. – Aliás, talvez fosse melhor dizer representatividade em vez de reconhecimento. Ser reconhecido é fazer sucesso, ter fama, o que não é o meu caso.
Uma faceta que pode não lhe dar fama, mas desperta respeito, é a de pesquisador das tradições africanas e afro-brasileiras. Acaba de lançar pela Autêntica, com o professor gaúcho José Rivair Macedo, da UFRGS, o segundo volume do “Dicionário de História da África”.
Doutor Honoris Causa da Uerj e da UFRJ, ele vem entrando na bibliografia de cursos diversos, como os de filosofia.
— O trabalho do Nei Lopes ainda não atingiu, na universidade, a dimensão para a qual sua obra está projetada. Mas, parafraseando um samba cantado pela Jovelina Pérola Negra, quem vai ter que explicar o atraso é a universidade — afirma Marcelo José Derzi Moraes, professor de filosofia da Uerj. — Nei está inscrito na história do samba, mas, também, na história do pensamento negro brasileiro. A importância dele transborda os limites impostos pela universidade. Mas é preciso que sua obra seja realmente reconhecida, para que aconteça uma radical transformação no que diz respeito ao pensamento brasileiro dentro da universidade.
Para Fabiana Cozza, cantora e doutoranda em música pela Unicamp, Nei é “o maior pensador negro acerca do samba e das suas vertentes”. Coisas nítidas agora ele já teria anunciado em seu primeiro livro, “O samba, na realidade”, de 1981.
— Ele propõe um pensamento sobre a sociedade brasileira a partir das expressões musicais negras. Isso conta a história do país de forma diferente, com outras vozes, outros personagens — diz ela.
Fabiana não pensava em lançar disco em 2022, mas mudou de ideia ao receber cerca de 40 inéditas de Nei. Já selecionou 22, que reduzirá a 13 ou 14, para o trabalho que será lançado no segundo semestre.
Um EP está sendo produzido pelo saxofonista e arranjador Thiago França. Serão seis inéditas de Nei interpretadas pelo próprio autor. França cita “Kitábu”, de 2005, como um livro que o influenciou bastante.
— Se ele tivesse feito só as músicas ou escrito só os livros, já seria alguém de muito destaque. Mas ele fez as duas coisas — destaca. — Há profundidade nas letras das músicas, e a escrita tem a fluência de quem é do samba.
Letras em livro
Nei é autor ou coautor de sambas como “Senhora liberdade”, “Goiabada cascão”, “Gostoso veneno”, “E eu não fui convidado”, “Tempo de Dondon”. Mais de 300 de suas letras foram compiladas pelo produtor e cineasta Marcus Fernando para o livro “Academia de letras”, que sairá no segundo semestre.
Marcus também é responsável, com PH Souza, pela série de dez episódios “Nei Lopes – No fundo do Rio”, que irá ao ar até o fim do ano no canal Music Box Brazil.
Está no prelo o infanto-juvenil “As viagens de Simba Jazíri” (Globo Livros). E Luiz Antonio Simas, Diogo Cunha e André Diniz preparam para a editora Numa uma biografia de Nei.