Após 36 anos, o artista plástico Pedro Graña Drummond já se acostumou com a responsabilidade de administrar a obra de seu avô, Carlos Drummond de Andrade. Pode-se dizer que o poeta mineiro, um amante dos arquivos, facilitou a sua vida. Ao morrer, em 1987, o autor deixou seu acervo organizado em diversas pastas, incluindo inéditos a serem publicados após a sua morte.
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A nova versão de “Viola de bolso” é, segundo Pedro, a última leva desse material. Produzida originalmente para a coleção Cadernos de Cultura, do então Ministério da Educação e Saúde, a obra teve duas edições anteriores. A primeira, de 1952, trazia apenas 37 poemas. A segunda, saída três anos depois, ganhou 17 poemas suplementares e foi rebatizada como “Viola de bolso: novamente encordoada”. Agora reeditada como “Viola de bolso: mais uma vez encordoada”, a nova edição traz mais 25 poemas inéditos em livro — totalizando 91 poemas.
— Para mim, cuidar da obra dele é uma forma de atenuar a saudade — diz Pedro, que mora no mesmo apartamento em que o avô e a avó morreram, em Copacabana, entre memórias e pinturas do Portinari. — Chego a escutar a voz dele, sinto que estou me reencontrando. Carlos não escreveu aquele livro “Esquecer para lembrar”? Comigo, é o contrário. É lembrar para continuar lembrando.
O próprio Pedro não sabe explicar a demora em tirar essa versão de “Viola de bolso” da gaveta. Em 2021, ele e o seu irmão, o matemático Luis Maurício, decidiram levar a obra do avô de volta para a Record, após uma década na Companhia das Letras. Foi então que surgiu o projeto para a publicação do livro. Um parêntese: desde 1990, o Grupo Record é dono da José Olympio, editora pela qual o poeta publicou por décadas. A mudança, portanto, representou uma espécie de duplo retorno. O novo livro, aliás, sai agora pela José Olympio, marcando a volta de Drummond para a sua primeira casa editorial.
— O importante sobre essa nova edição é que não se trata de raspar o tacho — diz Pedro. — Carlos deixou organizado do jeito que queria. Reescreveu poemas, juntou outros que tinham saído em jornais e incluiu alguns desconhecidos. Há coisas muito atuais.
Um dos poemas, “Mata Atlântica” (na imagem abaixo) é tão forte como protesto que deverá ser usado pela S.O.S Mata Atlântica em campanhas de conscientização ambiental. O poeta evoca a Mata Atlântica como as paisagens mutantes de sua Itabira transformada pela mineração. O que ele registra com seus olhos, seus versos e sua câmera está fadado a desaparecer. “A câmera passeia contigo pela Mata Atlântica./ No que resta — ainda esplendor — da Mata Atlântica,/ Apesar do declínio histórico, do massacre/ De formas latejantes de viço e beleza./ Mostra o que ficou e amanhã — quem sabe? — acabará/ Na infinita desolação da terra assassinada”.
'Pipocas’
A vertente ecológica de Drummond volta e meia ressurge nas redes. Em janeiro, em meio à crise humanitária dos ianomâmis, viralizou uma coluna escrita pelo poeta em 1979 para o Jornal do Brasil. Intitulada “Não deixem acabar com os yanomami”, já alertava para o perigo que o garimpo representava para os povos originários.
Outro inédito de “Viola de bolso”, a série de 11 poemas de “Rio: ontem, hoje, amanhã” tenta explicar o inexplicável: a “caprichosa geometria carioca”. O Rio, afinal, “não é simples”, conclui. “Seu dernier cri vizinha o primitivo/ Sua opulência casa-se ao espontâneo”.
O Drummond cinéfilo aparece em “Papo com Lumière”, em que ele dialoga com o pai do cinematógrafo ao assistir o primeiro filme da história, “A chegada do trem à estação”, 89 anos depois da sua projeção inaugural (ou seja, em 1984).
É justamente esse lado do avô que Pedro pretende recuperar na próxima publicação. Será uma reunião de crônicas, artigos e poesias sobre cinema — sendo a grande maioria dos textos inéditos em livro. Há desde observações mais poéticas e mundanas, que Pedro chama de “pipocas”, a reflexões profundas sobre a sétima arte. Este projeto não foi exatamente organizado por Drummond em vida, ainda que o poeta tenha guardado todos os recortes destes textos (publicados em sua maioria na imprensa). O título já foi escolhido: “Retrolâmpago de amor visual”, tirado de um poema de Drummond sobre as atrizes do cinema mudo.
— Estou organizando o livro por temas, buscando os assuntos que ele mais abordou — diz Pedro, que se lembra de ver filmes com o avô em uma moviola de 35mm trazida de Paris por Manuel Graña Echetverry, genro do poeta. — Tem muito texto sobre Chaplin, Joan Crawford, Greta Garbo. Ele também fala sobre a cena da cinefilia, critica os filmes dublados, preocupa-se com o desaparecimento das salas de cinema. Carlos estava emocionalmente ligado ao cinema.
Receitas e filmes 'escandalosos'
Pedro Graña Drummond tem ainda um outro projeto, que promete ser divertido: uma série de receitas culinárias que Drummond recortava das revistas para Dolores, com quem era casado. Embora incipiente, a ideia mostra o potencial de novas publicações a partir da obra do poeta. Vale lembrar que apenas uma ínfima parte de sua vasta produção jornalística (foram 30 anos colaborando no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil) foi colocada em livro por ele. Pedro conta com a ajuda de Humberto Werneck, amigo e autor de uma futura biografia de seu avô, para mapear este material.
— Entre tantas milhares de crônicas que ele publicou na imprensa, há muito mais a ser recuperado em velhos recortes — diz Werneck. —Inclusive dos seus começos como cronista, em Minas Gerais, antes de se mudar para o Rio, em 1934. Exemplo? Os delicioso textos que escreveu sobre cinema, uma de suas mais fortes e duradouras paixões. Aliás, sabia que o primeiro texto de Carlos Drummond de Andrade num jornal não estudantil, aos 17 anos, foi sobre um filme que causava escândalo na Belo Horizonte de 1920? Era sobre “Diana, a caçadora”, e foi publicado no “Jornal de Minas” em 15 de abril de 1920.