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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro


Livros de terror e ficção  — Foto: Arte O Globo
Livros de terror e ficção — Foto: Arte O Globo

A angústia provocada pela hiperconectividade não é apenas pauta para as editorias de saúde. Lançamentos recentes de escritores nascidos na era digital exploram a opressão tecnológica do mundo contemporâneo. No romance “Mil placebos” (Uboro Lopes), Matheus Borges usa a estética neonoir para investigar o efeito da internet nas relações afetivas. Na linha da série “Black mirror”, os contos de “O inconsciente corporativo” (DBA), de Vinícius Portella, mostram o lado inquietante de dispositivos como o Tinder, o bitcoin e a inteligência artificial. Revelação da literatura islandesa, a jovem Frida Isberg aborda a polarização política e os mecanismos de controle social em “A marcação” (Fósforo).

Como tem acontecido nesse tipo de narrativa, é muitas vezes difícil identificar se estamos lidando com ficções científicas ou retratos realistas do nosso cotidiano. Certeza mesmo só a desorientação causada pelas mudanças constantes — essa sensação de que o ser humano está sempre um passo atrasado em relação às novas tecnologias.

— Quase todos os contos se passam depois de 2016, que é quando essa virada (da tecnologia como algo perigoso) foi ficando mais clara pra mais gente — diz Portella, de 34 anos. — Eu tento manter algum entusiasmo com o potencial democrático da internet, mas não anda fácil acreditar nisso. E as últimas novidades que anunciam no Vale do Silício, do metaverso à web3 (nova fase da internet que promete mudar nossa maneira de usá-la), passando pelos usos dominantes de inteligência artificial, só prometem um mundo mais fechado, vertical e dominado por corporações.

Distopia ou atualidade?

Justamente em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, uma febre por distopias e ficções especulativas colocou antigos clássicos como “1984” e “O conto da aia” de volta à lista dos mais vendidos. Um sentimento era o de que esses livros haviam, de alguma forma, “previsto” uma série de problemas atuais. Nesse período, algumas livrarias americanas passaram a colocar um aviso em suas prateleiras: “Ficção pós-apocalíptica foi transferida para a seção atualidades”.

Matheus Borges: “thriller paranoico” que transita por fóruns on-line e outros espaços virtuais — Foto: Divulgação
Matheus Borges: “thriller paranoico” que transita por fóruns on-line e outros espaços virtuais — Foto: Divulgação

Não surpreende, portanto, que uma nova geração de escritores tenha mais interesse em dar conta das angústias tecnológicas de seu tempo do que antecipar as futuras. No conto “Pedro Gustavo, autor de ficções”, Portella imagina uma inteligência artificial capaz do “impossível”: criar “um novo conto antológico de (Jorge Luis) Borges que não fosse escrito por mãos”. O autor concebeu a história um pouco antes do surgimento do ChatGPT, que mudou o debate sobre máquinas substituindo tarefas humanas. Ele admite que, se tivesse escrito hoje, o texto teria saído muito mais crítico e sombrio:

— O mundo anda acelerado demais pra gente antecipar o que vem por aí, conseguir descrever o que vivemos já fica de bom tamanho — diz.

Para Matheus Borges, modelos “incontornáveis” de romance distópico, como “1984”, ficaram para trás, no século XX. O seu romance “Mil placebos” tenta algo diferente: emular o ritmo frenético da vida digital, quase que replicando um algoritmo de rede social.

— A forma do livro tem muito a ver com a maneira como a gente consome informação hoje: muitas idas e vindas no tempo, tramas que se dividem e se sobrepõem, um acúmulo de informações e opiniões, um excesso de reviravoltas — diz o autor, nascido em 1992, um ano após a chegada do primeiro provedor de internet ao país.

Espelhos virtuais

Nesse “thriller paranoico” que transita por fóruns on-line e outros espaços virtuais, o protagonista resolve investigar o suicídio de sua webpaixonite. Para Borges, é uma oportunidade para refletir sobre os efeitos desses múltiplos espelhos virtuais em nossa identidade.

— Queria explorar essa duplicidade inerente: quem somos na “vida real”, quem escolhemos ser nesses espaços e como a interação entre essas duas coisas nos afeta numa dimensão psíquica — diz Borges. — Estamos on-line o tempo inteiro, alternando entre diferentes personalidades. De que maneira ocorre essa compartimentalização? O que me permite falar bobagem no Twitter ao mesmo tempo que escrevo um e-mail extremamente profissional?

Frida Isberg: 'Não temos ideia de como enfrentar a tecnologia, porque ela sempre se esconde como progresso' — Foto: Divulgação
Frida Isberg: 'Não temos ideia de como enfrentar a tecnologia, porque ela sempre se esconde como progresso' — Foto: Divulgação

“A marcação”, de Frida Isberg, imagina um muro em sua Islândia natal, que divide dois tipos de cidadãos: os que se submeteram a um teste de marcação para prever comportamentos antissociais; e os que consideram a medida uma forma preconceito institucional. Ainda que a premissa tenha sido definida como “especulativa”, a autora de 30 anos não vê “ficção científica” no que escreveu. O muro simboliza um fenômeno que ela crê acontecer também em sua casa: desde que começaram a consumir só um tipo de informação nas redes, os pais de Isberg passaram a viver numa realidade diferente da filha.

— Nessa estrutura pós-moderna em que vivemos, em que nosso sentido de comunidade foi afetado, ficou muito mais difícil reconhecer quando a utopia termina e quando a distopia começa — diz Isberg. — Não temos ideia de como enfrentar a tecnologia, porque ela sempre se esconde como progresso. Mesmo que você saiba identificar o mal que ela traz, sempre vai aparecer alguém insistindo para experimentar este ou aquele aplicativo, ou aquela jogo, ou aquela oferta.

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