Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Quando vestiu uma calcinha, um vestido transparente e cantou “Tigresa”, tudo fez sentido para Filipe Catto. Foi como se a cantora, compositora e poeta gaúcha de 35 anos colocasse para fora toda mistura de feminilidade e ferocidade que pulsava dentro dela e enxergava traduzida na letra daquela música.

“Vaca profana” trouxe a sensação de “incorporar uma entidade” que sempre habitou suas entranhas. “Lágrimas negras”, a impressão de cantar as próprias dores. Por essas e outras, o encontro da artista com o repertório de Gal Costa foi... fatal.

A contracapa de 'Belezas são coisas acesas por dentro' faz referência à capa de 'Índia', disco de Gal Costa — Foto: Reprodução
A contracapa de 'Belezas são coisas acesas por dentro' faz referência à capa de 'Índia', disco de Gal Costa — Foto: Reprodução

O que começou com um show de Filipe em tributo à baiana, a convite do Sesc, desagua agora em “Belezas são coisas acesas por dentro” (selo Joia Moderna), o primeiro disco em homenagem a Gal desde que ela morreu. Sai na próxima terça-feira (26), data de aniversário das duas cantoras. Esse é também o primeiro álbum de estúdio de Filipe após a transição. Ela abandonou o posto de galã indie do pop brasileiro — lugar que afirma jamais ter ocupado — para se tornar uma pessoa trans não-binária.

— Sair da binariedade foi como se tivesse fugido de um hospício. Desde criança tive essa identidade de gênero como uma prisão. Falava para a minha mãe: “Não sou um menino”. Ao mesmo tempo, não me considero uma mulher trans. Quando descobri que existia a ideia de não-binariedade, me entendi completamente — conta a artista.

O projeto veio para coroar o processo de libertação de se entender com o próprio corpo. E olha que Filipe hesitou diante do convite para gravar uma de suas maiores referências musicais.

— Me deu medo. Mas a pomba-gira disse no ouvido: “Vai fazer essa homenagem pra sua mãezinha”. Foi um chamado espiritual — acredita Filipe, responsável, junto com Céu e Maria Gadú, pelos vocais de "Cuidando de longe", parceria de Gal com Marília Mendonça. — Dentro do meu processo de afirmação de gênero, cantar Gal fez eu me sentir representando todas as pessoas dissidentes do sistema binário. Gal cantou a história de muitas de nós, é símbolo de feminilidade, poder, transgressão.

Ao assistir à performance de Filipe no palco, o DJ Zé Pedro, dono do selo Joia Moderna Disco, se sentiu “arrebatado”. E se tornou um dos maiores incentivadores para que a artista registrasse o trabalho.

— É importante e emocionante ver uma trans tomar para si os femininos de Gal sem querer ser Gal, sem emular Gal, mas apontando para o futuro na trilha dos caminhos abertos por ela — elogia. O legado da Gal teve sua importância artística e política confirmadas no show de Catto — diz. — Nada é literal ou saudosista. Tudo celebra nova sensualidade, outro sentido político. Uma jovem na plateia, em êxtase, gritou: “Tigresa 2023!”. É isso. Catto mostrou que lembrar Gal não é só fazer pose e cantar, presa ao dinheiro. É ver-se assim, de fora de si.

Filipe Catto: 'Chorava duas vezes: por sofrer bullying e por não poder contar a minha mãe que me zoavam porque eu era bicha' — Foto: Divulgação / Juliana Robim
Filipe Catto: 'Chorava duas vezes: por sofrer bullying e por não poder contar a minha mãe que me zoavam porque eu era bicha' — Foto: Divulgação / Juliana Robim

'Transgressão' de gênero

Mais que transição, transgressão é a palavra que melhor define a jornada de Filipe:

— Quando se fala em transição de gênero soa como se estivesse indo de um lugar para outro, em direção à binariedade, à ideia que se faz de mulher cis. Quando, na verdade, a ideia de beleza, corpo e identidade que se tem do padrão de beleza de mulher cis é inatingível até para ela. A ideia de transgressão é dizer “esse código é inalcançável, artificial”. Transgressão de gênero é dizer “esse gênero que tenho é válido porque eu estou propondo”.

Em busca de “liberdade absoluta”, Filipe precisou abandonar códigos.

— Penso na questão de gênero não como biológico, mas como estrutura de poder e comportamento frutos da cultura e do tempo. Pessoas não binárias, travestis, transexuais sempre foram colocadas na janela de doença mental. A gente parou de ser internada em instituição psiquiátrica há pouquíssimo tempo — lembra ela, que optou por não mudar de nome nem fazer hormonização. — Gosto do meu corpo, expressa tudo. Ser esquisita, ser a pergunta e não a resposta, me dá tesão. É uma questão de rebeldia. Patti Smith e Cassia Eller sempre me inspiraram.

Até chegar nesse nível de aceitação, levou foi tempo. Um percurso que teve como ponto de virada um batom vermelho. Filipe considera emblemático o momento em pintou os lábios de carmim pela primeira vez, na pandemia, enquanto se arrumava para uma live.

— Ali, caiu a ficha de que sairia assim para ir festa ou para a padaria. Se transformou numa coisa cotidiana.

Um dia a dia que vem se tornando mais confortável para Filipe, que chegou a viver “disforias mil” com seu corpo. Se achava “horrenda”. Não tirava a roupa nem para ir à praia. Evitava o espelho a qualquer custo.

— Não conseguia me olhar, escovava os dentes olhando para baixo. Tinha uma relação doentia com meu corpo. Usava roupa larga para me esconder não queria lidar com a minha imagem. Pensava: “Como faço para desaparecer?”. Minha relação com o mundo era através da minha voz, que era feminina, uma coisa “me escutem, não me vejam”. Tanto que estou com a mão na frente do rosto nas capas dos meus discos “Fôlego” e “Entre cabelos”, olhos e furacões”. Fazer clipe me dava pavor. Quando me via, lembrava que não era o que queria ser.

Foram cinco anos de terapia para elaborar tudo. E arte ali, como grande aliada.

— São 15 anos de carreira. Em cada disco, saía uma camada de prisão. Comecei a fazer as pazes com meu corpo com exercício físico e alimentação. Perdi peso, comecei a me achar. Ganhei confiança e o figurino virou algo que amo. Uso tudo que sonhava e não tinha coragem. Fui identificando que era uma gatinha — conta. — Comecei a pegar sol, me separei de um casamento de 7 anos, resolvi tomar todas as drogas e ir em todas as festas. Quando comecei a conviver com pessoas não binárias, meu processo andou rápido.

Um caminho que começou bem antes de entender o que era preconceito, com uma criança que botava toalha na cabeça, imitava divas e curtia “tudo que era rosa e tinha coraçãozinho”.

—Adorava dançar, rebolar. Era uma criança viada, gorda, que cantava Whitney Houston. Aquilo causava tanto pavor nos meus pais, que comecei a me reprimir. Ao ter contato com outras crianças, passei a entender o que era a bicha, que seu destino era ser aidética, morrer, ser abandonada pela família. Que a travesti era prostituta que era abusada e assassinada — recorda. — Desde cedo, entendi que o meu lugar era o de exclusão. Sofria bullying e chorava duas vezes, porque não podia contar para a minha mãe que me zoavam porque era bicha.

O jeito que Filipe encontrou para se proteger da violência foi se fechar no próprio mundo. Se tornou uma criança solitária. Sua companhia viraram os discos, os filmes e os livros. Corria atrás de tudo que pudesse dar vazão ao que era de uma forma indireta. Era uma forma de conseguir ser não sendo.

Quando começou a cantar com o pai músico, entendeu que talento era sua arma. Quando soltava a voz, não era ridicularizada, mas aplaudida. Com o violão embaixo do braço, passou a bater na porta dos bares pedindo para cantar um repertório que passava por Angela Ro Ro, Cazuza, Alanis Morrissete e Madonna.

— A galera ficava de queixo caído e eu ganhava o job. Eu já sabia que era boa.

Formou bandas de rock com amigos até ir morar em Nova York, onde se desenvolveu como compositora. Com a grana do trabalho de garçonete, bancou a gravação de seu primeiro EP, “Saga”, lançado pela Internet em 2009. Envio o trabalho ao produtor Marcus Preto e pediu uma oportunidade no projeto “Pratas da casa”. Saiu de lá de contrato assinado com uma gravadora. Em seguida, uma de suas canções, "Saga", foi parar na novela “Cordel encantado”. Resultado: nunca mais voltou para casa.

— Saí de Porto Alegre com 300 reais no bolso e um sonho de princesa, que deu certo. Foi uma coisa meio Cinderela.

Também ganhou um padrinho e fã.

— Filipe tem uma onda rara, principalmente no palco. Se entrega, se atira. Não tem truque. É aquela coisa das grandes intérpretes, que arrancam de cada palavra, com a voz e com o corpo, significados que a gente nunca tinha notado. Reescrevem as canções sem mudar uma letra de lugar —destaca Marcus Preto.

De lá pra cá, a transição transformou o processo de criação de Filipe, que hoje se sente mais fiel a si mesma.

— Esse processo veio junto de uma pesquisa na técnica. Sempre tive registro agudo. Como diz a música de Caetano, “eu minto, mas a minha voz não mente”. A transição me ajudou a brincar de diva, me trouxe o prazer de usar o meu poder total, de não me levar tão a sério. — Também mexeu com a compositora. Fez com que ganhasse minha voz interna. Tenho uma dor abissal na alma, de revolta com o que a gente passa e mágoas do passado. Coisas que preciso expressar, mas não tinha coragem de contar.

É o que ela agora faz agora em seu quarto disco de inéditas, em processo de finalização. Um álbum “niilista e ridicularmente romântico” (“conto tudo, dou nomes, cpfs”), que ela define também como “o de uma garota triste e revoltada dos anos 1990”. Ele reflete o buraco em que Filipe se encontrava pós-pandemia, diante da cultura sucateada, da separação e da “visita a lugares internos dolorosos”. A imersão na tristeza foi tão funda que ela precisou ser resgatada por Gal Costa.

— Estava no fundo do poço, doida real. Não conseguia mais cantar. Não tinha voz. Ia para o estúdio gravar, ficava chorando e não conseguia. Gal me tirou desse espaço, falou “volta pro tesão, olha o peito duro batendo no queixo, sai dessa deprê”. Ela trouxe de novo a minha voz, minha energia e vitalidade.

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