Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Como a imagem de um escritor afeta a percepção do público e seu prestígio na crítica? Qual a relação entre vida social e vida literária? São questões que o crítico e professor da USP Fernando Antonio Pinheiro Filho destrincha no recém-lançado “O Mago, o Santo, a Esfinge” (Todavia) — respectivamente, Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector. As três figuras não foram escolhidas por acaso. Ícones da literatura brasileira, estes autores criaram, cada um à sua maneira, e nem sempre de forma consciente, uma persona pública marcada no imaginário social e cultural.

A partir dos escritos do trio, mas também de depoimentos, entrevistas e fatos biográficos, a reunião de ensaios examina a fricção entre literário e extraliterário — como a exposição pública dos escritores e suas relações pessoais e institucionais. É um tema quente numa época em que eventos com autores se multiplicam e redes sociais apagam fronteiras entre performance pública e vida íntima.

— Os três escritores do livro representam arranjos diferentes da relação entre o texto escrito e a figura de autor — diz Pinheiro Filho. — Claro que o texto vale por si. Mas o horizonte de expectativa do leitor é sempre impactado pela autoconstrução da imagem autoral. Há uma conexão entre o escritor que está no texto e o que está fora dele.

Mistérios cultivados

Pinheiro Filho destaca a incompatibilidade entre a postura de “mago” de Paulo Coelho e o que se espera de um “autor sério” — o que dificulta seu reconhecimento não apenas como escritor respeitável, mas simplesmente como escritor. Quase o inverso de Manuel Bandeira. O “São João Batista do Modernismo” encarna em cada aspecto de sua vida um ideal de escritor que se sacrifica pela poesia — em “uma dimensão que não raro remete ao sagrado”, aponta o pesquisador. Bandeira cumpre uma profecia autorrealizável ao se tornar o típico habitante da “Pasárgada Celeste”, onde só os “fatos poéticos” importariam.

Capa de "O Mago, o Santo, a Esfinge" — Foto: Divulgação
Capa de "O Mago, o Santo, a Esfinge" — Foto: Divulgação

O caso de Clarice, que fecha o livro, é mais ambíguo. A autora de “A hora da estrela” é conhecida por ter dito que encarou a Esfinge do Egito sem que nenhuma das duas tivesse decifrado a outra (“Cada uma com seu mistério”, escreveu ela). Histórias como esta alimentaram sua fama de hermética. Só que, a partir de “A paixão segundo G. H.” (1964), ela passa também a cultivar a figura da “mulher comum”. Clarice joga com esses dois lados, o que só aumenta o seu mistério.

— A figura da Esfinge casa bem com a da escritora difícil, complexa, profunda, e isso foi se plasmando já a partir da recepção de seus primeiros livros — diz Pinheiro Filho. — Num segundo momento, surge a figura terrestre da dona de casa, que escreve para sustentar a família, com a máquina no colo enquanto vigia os filhos. Uma mulher simples, prosaica, que não lê muito e, quando lê, prefere romances policiais. Acho que esse novo figurino lhe permitiu tomar uma distância da dimensão sagrada da literatura. Com isso, ganhou autonomia como escritora, explorou outras possibilidades.

Estratégias profissionais

Na introdução do livro, Pinheiro Filho mostra como a aparência dos escritores e suas intervenções públicas ganharam um lugar importante no cenário contemporâneo. Com o “dentro” e o “fora” do texto literário cada vez mais interconectados, o que ele chama de “dimensão cênica” do escritor ganhou um caráter mais técnico, trazendo ainda mais conflitos para a autonomia criativa.

— Não poderia ser diferente num mundo digital — diz ele. — Paralelamente, a gestão dessa dimensão tornou-se mais profissional. Basta atentar para a proliferação de agências literárias de grande porte, ou em como o marketing editorial por vezes incide na construção da figura de autor. De todo modo, sempre haverá estratégias para os autores lidarem com isso, mas elas não se dão apenas no plano pessoal, dependem muito do estado do sistema literário e suas instituições. No fundo, a autonomia é sempre uma conquista sob ameaça.

Enquanto autores como Bandeira, Clarice e Coelho dependiam da intuição para direcionar sua vida pública, escritores que buscam renome literário e midiático nos anos 2020 podem contar com equipes profissionais. As próprias editoras passaram a incentivar esse tipo de intermediário.

— Trabalho principalmente com agências — diz Paula Drummond, editora da Globo Alt. — É importante para o autor tanto para evitar que ele se desgaste com a editora, tenha direcionamento em questões burocráticas e um apoio para pensar a carreira, quanto para a editora, que recebe manuscritos com uma primeira edição, tem ponto focal que entende o mercado e também faz uma pré-seleção nesse mundo de informação abundante.

Efeito internet

A dimensão cênica também teria hoje um peso maior no jogo literário. Segundo Drummond, a ideia daquele autor ermitão que não se mistura com seus fãs já não faz muito sentido —especialmente no mundo jovem, em que o leitor é muito comunitário.

— Isso também se torna um peso para os autores, que se veem na posição de serem autores e influenciadores — diz Paula. — Acho que é a mesma questão que todos passam um pouco profissionalmente hoje em dia.

Mais do que as relações sociais dos escritores, as redes alteraram a imagem da própria literatura, aponta o crítico Luís Augusto Fischer, que assina a orelha de “O Mago, o Santo, a Esfinge”.

— A literatura se tornou uma arte “quente” — diz o crítico. — Ela, que sempre foi uma arte feita no isolamento do indivíduo e fruída no isolamento do leitor, ganhou essa dimensão do “ao vivo”. Tem toda essa coisa de sarau, festa literária, slam, que antes tinham papéis muito secundários e que agora estão no centro de tudo. Quem fizer uma sociologia literária dessa geração, como o Fernando fez das gerações anteriores no livro dele, vai ter que pensar sobre isso.

Figura com presença forte na mídia tradicional e nas redes sociais, o escritor Raphael Montes acredita que, na era digital, ficou mais difícil construir um “personagem” como Bandeira, Clarice e Coelho fizeram. A figura pública de Montes, aliás, é bem desconectada de sua obra. O autor de “Uma família feliz” (Companhia das Letras) escreve sobre assassinatos sangrentos e tramas policiais, mas nas redes sociais e nas feiras é simpático, descontraído e brincalhão.

— No meu caso, são dois mundos que não convivem, e meus leitores costumam achar isso inusitado — diz o autor, que diz sofrer certo preconceito do mundo literário por se apresentar publicamente como uma “pessoa normal”. — Faço questão de mostrar que não sou uma figura atormentada, cheia de nuances, que vê a escrita como algo sobrenatural. Por conta disso muita gente no mercado editorial vira a cara para o que faço, me considera inferior sem nunca ter me lido. É como se um escritor não pudesse ser como eu, uma cara otimista, que gosta de carnaval.

Serviço

‘O Mago, o Santo, a Esfinge’. Autor: Fernando Pinheiro. Editora: Todavia. Páginas: 248. Preço: R$ 89,90.

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