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Denise conhece as regras do lugar: nada de bebida alcoólica, cigarros, chocolates e outros prazeres secretos contendo açúcar, gordura e derivados de leite. No menu, a letra “v” indica produtos veganos, sucesso dos últimos anos. No jantar, ela faz careta para uma panqueca de ricota, minguada, arrepende-se de preterir a proteína. No Spa Montana, os prazeres da carne são vetados. E esse tédio monástico, de cardápios controlados e caminhadas recreativas, faz os pensamentos da protagonista se elevarem a um grau nada santo.

Como no ditado “mente vazia, oficina do diabo”, a cabeça de Denise passa noites em claro. Em certa ocasião, depois de um dia de refeições regradas, a protagonista fica atordoada pelo odor fétido do golfo da companheira de quarto, uma madame com fortes inclinações para a bulimia. Na latrina de luxo, a mulher precisa perder peso antes do café da manhã. Denise, impressionada, remói-se na alcova de plumas de ganso, fica sem reação. Ali não há camaradagem. Ela passa os dias em uma espécie de transe, atordoada pelos pormenores que se fazem urgentes à sua volta. Da turma de mimados, talvez seja ela a mais pé no chão — isso porque cursou Serviço Social, à sua época, curso mais fácil para ingressar, embora nunca tenha exercido a profissão (não remuneradamente, frisa).

A protagonista de “A cortesia da casa”, primeiro romance da contista premiada Marta Barcellos, é uma mulher na casa dos 50 que está cansada. Fatigada da rotina do Rio de Janeiro, dos problemas domésticos com o ex-marido e da recém-saída do filho da adolescência. Precisa desconectar. E, em meio ao turbilhão que foi sua vida em 2013, resolve subir a serra fluminense e se hospedar em um spa para abastados, um lugar com afetação decadente — que, há décadas, foi uma casa de shows dos ricos e famosos do Rio.

A fauna social que habita o reduto são os tipões de classe média alta. Amigos dos colégios católicos em que estudou, empresários tentando se recuperar dos burnouts, esposas de senadores. Por pouco, avista-se a silhueta, ainda que contida, de uma criatura com ares da famosa “dona Helena”, a personagem icônica do dramaturgo Manoel Carlos: a cara do high-society carioca no final do século passado. Mas o romance de Marta Barcellos não vai na esteira dos enredos cinematográficos, pique novela das nove. “A cortesia da casa” recria um inventário de futilidades em que cada peça, embora tenha seu valor, está fora de moda e enferrujada.

“Conflito: mulher na crise de meia-idade, superficial como são as personagens de Katherine Mansfield”, narra a autora, em dado momento, quando sua vida se torna um livro.

Ficcionalizada por uma amiga, Denise não gosta do que lê. A personagem construída para representar a ex-agente de viagens se assemelha a Denise em aparência, mas a personalidade é supérflua. Como todo fútil não acha que é fútil, é difícil enxergar uma vida comum repleta de tempestades em copos d’água.

Ecos da realidade

Denise observa, escuta mais, fala menos. É exceção no lugar, onde socialites conversam aos cotovelos. Em meio ao vazio da própria vida, lá pelas tantas a protagonista escreve que “Nem todas as vidas (mesmo anotadas) precisam ser contadas”. Uma frase certeira que pode resumir o romance. Barcellos sabe o abacaxi que tem em mãos, mas, em vez de descascá-lo, fazer justiça e colocar os aristocratas na corda bamba, ela bem manipula suas marionetes. Expõe seus pecados, maximiza seus excessos, infla vazios. Ou, simplesmente, descreve diálogos com ecos da realidade. As personagens são como são. E cá, fora da ficção, vizinhos, amigos e parentes se encaixam perfeitamente nos arquétipos construídos pela narradora.

A ode à futilidade é a vida desta protagonista. Denise julga cada um que passa pelo seu caminho. Por peso, idade, conta bancária. Como diria Oscar Wilde, as aparências não enganam, e o tiozão do zap pode ser um extremista escondido em piadas preconceituosas.

A imagem não trai neste romance, a autora mostra uma parcela da sociedade tradicionalmente ignorada pela literatura. Um grupo perigoso, que na última década ganhou força política com as redes. E vale lembrar que o romance se passa em 2013. É justamente neste período, em que a presidente (um personagem faz questão de pontuar a forma feminina da palavra, irritado) é impedida de governar, que as máscaras caem.

Denise, embora seja apolítica, não entra nas piras fanáticas dos convivas do spa luxuoso. Ela está preocupada com sua vida medíocre. Afinal, “a riqueza alheia sempre a atraiu e a intimidou, na mesma proporção”. Se o inferno são os outros, no Spa Montana, com todas as suas terapias e cremes caros, os diabinhos correm soltos.

Em tempos de terapias reveladoras, influencers com fórmulas prontas e motivadores gratuitos com discursos extremos, “A cortesia da casa” mostra a incubadora do fascismo à brasileira: lugares onde discursos atarracados de ódio são gerados, normalizados. Inofensivos, brotando de seres apolíticos, agitadores e parasitas. Torna-se um “White Lotus” tropical, puxando o spa do romance para perto dessa série de sucesso nos últimos tempos — em que o conflito de classes é evidente e as neuroses, terríveis, mas as personagens são tupiniquins demais.

Matheus Lopes Quirino é jornalista

‘A cortesia da casa’

Autora: Marta Barcellos. Editora: Record. Páginas: 160. Preço: R$ 49,90.

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