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Por Vinícius Assis, especial para O Globo — Cidade do Cabo, África do Sul

A comunidade internacional criticou a nova lei de Uganda, aprovada no mês passado, que prevê a prisão de quem não se identificar como homem ou mulher hétero no país. Mas Martin Ssempa, pastor local, comemorou a nova norma discriminatória em um vídeo no qual aparece com uma camisa com os dizeres “nação hétero” dançando, cantando e comendo uma jaca. A recém-criada lei também inspirou um ultraconservador projeto em discussão em Gana — em vias de ser aprovado pelo Legislativo local — ampliando a punição a pessoas que mantenham relações homoafetivas. Mais que casos isolados, estas legislações mostram que a homofobia avança em diferentes nações do continente africano devido a políticos populistas, religiões conservadoras e um histórico de preconceito.

Gana e Uganda estão entre os 32 países africanos que atualmente já têm legislações que criminalizam relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo. Isso representa 60% de todas as nações do continente, e metade dos países de todo o planeta nos quais a homofobia faz parte da lei. Mas, na região, novos projetos caminham para dificultar ainda mais a vida das pessoas LGBTQIAP+.

— Quando você vê a intolerância muito grande em vários países dentro do continente, é a prova de um processo que começa não só por meio de uma aceitação dentro da sociedade, mas parte de uma discussão política — disse o pesquisador em Diplomacia Africana e Governança Gustavo de Carvalho.

Trinta e dois países africanos punem pessoas LGBTQIAP+ — Foto: Arte O Globo
Trinta e dois países africanos punem pessoas LGBTQIAP+ — Foto: Arte O Globo

Refúgio na África do Sul

Quem se diz contra a causa LGBTQIAP+ neste tão diverso continente fala em “valores africanos” e critica a “agenda” que o Ocidente tenta impor sobre a África:

— Discurso propagado por muitos políticos populistas que se dizem ultraconservadores — disse o pesquisador.

Carvalho vive há 15 anos na África do Sul, onde se casou no fim do ano passado. Ele e o marido vivem em Pretória. Muitos LGBTs do continente acabam fugindo para o país em busca de refúgio, o que não significa que o território sul-africano pode ser considerado um paraíso.

— Sempre me senti seguro, acolhido. Ocorre um certo tipo de preconceito, mas acho que muito minoritário — disse o brasileiro.

Mas o pesquisador também reconhece que, por conta de privilégios sociais e econômicos, sendo alguém de classe média “vivendo em uma bolha muito mais liberal” é acolhido por uma legislação que não protege a todos.

— Pessoas de classes mais baixas, principalmente nas comunidades do país, acabam sofrendo muito mais por meio do preconceito. Existem vários casos de lésbicas, por exemplo, que acabaram sendo estupradas, vítimas do que se chama de “estupro corretivo”, o que é assustadoramente comum no país — revelou.

Privilégio estrangeiro

O incômodo também é sentido pelo profissional humanitário brasileiro Bismarck Moura, que lamenta as últimas discussões em Parlamentos africanos para dificultar ainda mais a vida de gays e lésbicas. Ele e o namorado, Fernando Fornaris, que é dos Estados Unidos, moraram até poucos meses atrás na Etiópia, outro país que criminaliza relações como a deles. O brasileiro confessou que inicialmente teve medo de se mudar para o país africano exatamente por conta da legislação, mas disse que quando estava morando lá, nunca teve problemas. Estava sempre em festas, cercado por estrangeiros e também etíopes, acompanhado do namorado. A relação dos dois era pública e o privilégio de ser branco e estrangeiro era perceptível, por exemplo, quando ele se sentia livre para dançar como queria.

— Mas eu via que meus amigos de lá, que também são homossexuais, não podiam ser eles mesmos. Eles se fechavam demais quando estavam em público — destacou.

Bismarck Moura (esquerda) e o namorado, Fernando Fornaris, no Egito — Foto: Acervo pessoal
Bismarck Moura (esquerda) e o namorado, Fernando Fornaris, no Egito — Foto: Acervo pessoal

Bismarck hoje vive na Tunísia, e Fernando, no Senegal.

Carvalho acredita que a pressão internacional pode ter efeito. Na contramão de novas leis discriminatórias, relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo deixaram de ser crime em Angola, Botsuana, Gabão, Lesoto, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Seychelles nos últimos anos. Mas ele lembra que há dificuldades para isso.

‘Não poste fotos’

A sede da União Africana fica em Adis Abeba, capital da Etiópia. Uma estrangeira que trabalha para uma organização internacional na cidade disse que foi procurada por uma ONG pedindo ajuda para fazer lobby pela causa LGBTQIAP+ no continente:

— Lamento muito, mas dificilmente terão sucesso. Nenhum país tem coragem para levantar essa bandeira na União Africana — contou ao GLOBO sob anonimato.

No fim do ano passado, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos — que é um grupo independente de especialistas dentro da estrutura da União Africana — rejeitou pedidos de status de observador a três ONGs alegando que a orientação sexual não é um direito expressamente reconhecido na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, assinada junho de 1981.

Uma dessas ONGs é de Ruanda, país que não criminaliza a comunidade LGBTQIAP+, mas onde a homossexualidade é algo socialmente reprimido e conseguir registrar este tipo de ONG não é uma missão fácil.

Em passagem pela capital, Kigali, a reportagem conversou com ruandeses ligados a ONGs pró-LGBTQIAP+ no país — essas organizações existem, mas nos documentos não podem ser explicitamente registradas com este propósito. Em agosto de 2018, Josine Umuhoza criou uma organização com foco em mulheres desta comunidade, a Hero:

— O maior desafio até agora para o LGBTQIA+ em Ruanda é a aceitação na sociedade, onde a maioria dos membros da comunidade são rejeitados por suas famílias e forçados a casamento héteros contra sua vontade — contou Umuhoza, que diz não organizar uma parada gay no país por riscos reais de perda de emprego ou ser ridicularizado.

A ministra do Interior britânica, Suella Braverman, visitou Ruanda recentemente para tratar do polêmico e milionário acordo para mandar estrangeiros em situação ilegal no Reino Unido a este país africano. A falta de políticas inclusivas, que incentivem pelo menos respeito aos LGBTQIAP+ em Ruanda, preocupa refugiados homossexuais.

Parada vira debate

Em um sábado de sol em Kigali, menos de 50 participantes vieram a um evento organizado no auditório da African Leadership University. Em vez de uma parada do orgulho gay nas ruas, um fim de tarde de debates sobre os desafios da comunidade LGBTQIAP+ no pequeno país do Leste da África onde o tema ainda é um tabu. O debate foi conduzido por Kevin, o mais velho dos quatro filhos de um casal evangélico, que na adolescência já sabia que era “diferente”, em comparação com o estereótipo de menino propagado pelo discurso religioso conservador que ouviu durante boa parte da vida. O jovem ruandês chegou a ter uma bandeira com as cores do arco-íris no próprio quarto. Contou que um dia o pai, um militar, perguntou-lhe de que país era aquela bandeira.

— Falei que não era de um país. Simbolizava resiliência, coragem, coisa boa.

Em 2018, quando estava no último ano do ensino médio, furou as orelhas. Apesar de que nunca usava o acessório dentro de casa, alguém do colégio telefonou para os pais de Kevin para contar. Foi a deixa que o casal já esperava para ter uma conversa séria sobre o assunto com o filho. Ele então contou aos pais que era gay e foi expulso de casa.

— Integrantes da comunidade LGBTQIAP+ ficam sem muitas opções para melhorar seus meios de subsistência, para atingir um nível de dignidade. Assim, continuam enfrentando estigma social, discriminação silenciosa em suas comunidades e exclusão de suas famílias — desabafou.

Horas depois do debate, a Pride KGL (Orgulho Kigali) ocorreu em um lugar privado: uma festa com ingresso ao equivalente a R$ 25. Para entrar, era preciso um cadastro, e então o local era informado. Na entrada havia um quadro com recomendações escritas com giz, como “não poste fotos sem consentimento”. Pouquíssimas pessoas tiravam fotos na festa.

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