Rio
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Por Ludmilla de Lima — Rio de Janeiro

Nos anos 1920, cerca de cinco mil moradores da então capital federal ainda viviam no Morro do Castelo. Para a maioria dos habitantes da cidade do Rio, aquele marco histórico era apenas reduto de uma população empobrecida e abandonada. Visto de longe, ou por quem só subia suas ladeiras em dia de procissão, parecia um lugar de difícil acesso, com paisagem em ruínas e lavadeiras, como descreviam os jornais, a dois passos da moderna Avenida Central (depois Rio Branco). Desde o começo do século XIX se falava em arrasar a “colina sagrada” da fundação do Rio a pretexto de “higienizar” a cidade. Às vésperas do centenário da Independência do Brasil, surgiu a deixa: era preciso abrir espaço para a grande Exposição Internacional que não só festejaria com pompa o Sete de Setembro em 1922, como transformaria o Rio numa grande vitrine mundial do progresso.

Hoje, enquanto se fala em esvaziamento da região central carioca, a derrubada do Morro do Castelo, com a remoção de seus moradores, e a realização de um dos maiores eventos vistos no país — a primeira exposição no mundo pós-guerra, que atraiu mais de três milhões de visitantes em dez meses — voltam à tona, embora varridos do mapa e, por muito tempo, também da memória. Do Castelo, sobrou só um pedacinho da via mais antiga do Rio, a Ladeira da Misericórdia, que liga um largo a lugar nenhum.

Treze países com pavilhões

Já da exposição, há alguns remanescentes. São a sede da Academia Brasileira de Letras (ABL), réplica do Petit Trianon de Versailles, que serviu como Pavilhão da França; e, na área da Praça Marechal Âncora, o antigo prédio do Museu da Imagem e do Som (MIS), que foi o Pavilhão da Administração, e o Centro Cultural do Ministério da Saúde, Pavilhão de Estatística. No conjunto do Museu Histórico Nacional, que já existia desde os tempos da colônia, funcionou o Pavilhão das Grandes Indústrias. Do outro lado da rua, o restaurante Albamar fica num torreão que sobrou do mercado municipal, onde foi montado o Pavilhão das Exposições Particulares. Treze países ergueram representações na exposição, aberta à zero hora de 7 de setembro sob fogos de artifício e com público de 200 mil somente neste primeiro dia.

À sombra do cenário com palacetes ecléticos e neocoloniais — incluindo um palácio de festas — por onde circulavam homens de cartola e mulheres com vestidos à moda parisiense, além de muitas crianças, todos da elite e da classe média (o ingresso de mil réis não era barato), via-se ainda uma parte do Castelo. Na verdade, um monte de escombros a que se reduziu o morro, primeiro pela ação de picaretas, depois, com a ajuda de mangueiras hidráulicas.

— Em 1908, o Rio sediou a Exposição Nacional, que foi mais comercial, porque comemorava a Abertura dos Portos. A de 1922 teve caráter universal, porque queria mostrar ao mundo do pós-Primeira Guerra o que o Brasil tinha a oferecer — explica a historiadora Marly Motta, professora aposentada da FGV, ressaltando que a exposição, que fez muito mais barulho que a paulista Semana de Arte Moderna, também mirava o público interno em meio a uma séria crise política e financeira.

Naquele mesmo ano, Copacabana fora palco do movimento tenentista, e o Rio de Janeiro, colocado sob estado de sítio pelo presidente Epitácio Pessoa. Para dar forma à exposição, Marly Motta lembra que foram emitidos pelo menos cem mil contos, o que agravou a inflação e ampliou a oposição ao evento.

— Era preciso convencer o público interno de que o Brasil vivia em harmonia e um período de prosperidade, num momento de uma crise política muito séria — afirma a historiadora, antes de completar. — A exposição tinha o aspecto de mostrar produtos da nossa indústria, manufatura e artesanato e, ao mesmo tempo, provar a capacidade do Brasil de intervir na sua natureza, numa visão contrária à de hoje. Nos Estados Unidos, em 1904, para a exposição de Saint Louis, uma área pantanosa foi toda aterrada. Não por acaso, como prova da potência da engenharia brasileira, a decisão aqui foi transformar numa planície a área do Castelo, lugar de uma população favelada, mesmo que se não se usasse esse termo.

O que os especuladores queriam era tornar a esplanada no coração financeiro da cidade, nos moldes de Nova York e Buenos Aires. Mas houve resistência. Um dos nomes contrários era o do escritor Lima Barreto, que em 1920 chamou de “megalomania” o projeto, liderado pelo prefeito Carlos Sampaio, também empreiteiro da obra: “O mundo passa por tão profunda crise, e de tão variados aspectos, que só um cego não vê o que há nesses projetos de loucura, desafiando a miséria geral. Remodelar o Rio! Mas como? Arrasando os morros... Mas não será mais o Rio de Janeiro; será toda outra qualquer cidade que não ele”, escreveu o autor. Lima teria se espantado se soubesse o que estava por vir.

O arquiteto e urbanista Cláudio Crispim, copresidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ), lembra que, ao longo das décadas seguintes, o poder público continuou com a política de afastar os moradores do Centro, em especial a população mais pobre.

— A gente passou muito tempo influenciado pelas políticas do movimento modernista no Brasil, em que as funções na cidade tinham que ser separadas: as pessoas estudam ou trabalham em uma área e moram em outra. A cidade também foi alvo de políticas equivocadas. Em 1970, foi baixado um decreto no Rio que proibia novas edificações residenciais no Centro. Houve uma aposta nisso e, depois, o Centro não conseguiu retomar esses moradores, virando um lugar cada vez mais esvaziado e perigoso.

Falta de planejamento

Hoje, a aposta da prefeitura é diferente, com a política do Reviver Centro: o programa incentiva a conversão de edifícios comerciais em residenciais, em troca de benefícios construtivos em endereços nobres da cidade, como na Zona Sul. Antes do Reviver, foi lançada a tentativa de ocupar o Porto.

— Agora a região recebe outro programa, que tem gerado licenças para residências, o que é uma boa notícia. A lacuna é não trazer uma mistura de classes sociais, ficando de fora uma população de baixa renda, que vai continuar morando distante — diz Crispim.

No caso específico da Esplanada do Castelo, a realidade é muito diferente do que se esperava no passado. Já na segunda metade dos anos 1920, o Brasil sofreu com a grande depressão, e a área foi abandonada pelos investidores. Só a partir dos anos 1930, surgem grandes edifícios, como o modernista Palácio Capanema e os ministérios do Trabalho e da Fazenda.

Para o arquiteto e urbanista Naylor Vilas Boas, que tratou da esplanada na sua tese de doutorado, a área acabou virando um lugar ermo e sem planejamento, com prédios históricos soltos no espaço.

— O projeto de centro financeiro é consolidado pelo arquiteto Alfred Agache no final dos anos 20. Mas, na década seguinte, o Plano Agache é questionado e interrompido à luz de outras concepções de cidade ligadas ao movimento moderno — explica Vilas Boas, professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ (Prourb).

Ele diz que a região foi alvo de outros planos: chegaram até a tentar demolir a Santa Casa de Misericórdia, que resistiu aos pés do antigo Morro do Castelo.

— A esplanada acabou se constituindo por fragmentos, nunca se completando como unidade urbana. Até hoje é um lugar incoerente. O Castelo foi onde nasceu a cidade, não merecia o que vemos hoje lá.

Prédios suntuosos, as maiores novidades e muita diversão

A Exposição do Centenário da Independência se estendeu até julho de 1923, devido ao seu sucesso. Na abertura, o presidente Epitácio Pessoa fez a primeira transmissão de rádio do Brasil. Um ousado parque de diversões foi a maior atração do evento, que trouxe uma multidão para ver o hidroplano Santa Cruz, usado na inédita travessia aérea do Atlântico Sul. Países como Estados Unidos, México, Itália, Noruega, Suécia e Japão montaram pavilhões na então Avenida das Nações (hoje um trecho da Avenida Presidente Wilson), apresentando o que tinham de mais avançado à época. No de Portugal, remontado depois em Lisboa, as pessoas iam conhecer azeites e vinhos. Entre os redutos temáticos, havia o da Estatística — atual Centro Cultural do Ministério da Saúde, fechado para obras —, onde eram divulgados dados sobre tuberculose e sífilis na população. As cervejarias Brahma e Antarctica construíram seus próprios espaços, e houve distribuição de prêmios a produtos nacionais: a marca Catupiry saiu com medalha de ouro. O incentivo à indústria brasileira, ainda incipiente, fazia parte da festa.

 Pavilhões erguidos para a exposição — Foto: Divulgação/Biblioteca Nacional
Pavilhões erguidos para a exposição — Foto: Divulgação/Biblioteca Nacional

As construções levavam a assinatura de importantes arquitetos, como Adolfo Morales de Los Rios, o mesmo do Museu Nacional de Belas Artes, e a dupla Archimedes Memória e Francisco Couchet, do Palácio Pedro Ernesto. Esses dois projetaram o Palácio das Festas e “embelezaram” a antiga fortaleza colonial, hoje Museu Histórico Nacional — criado no ano da exposição, o MHN abriga a mostra “Rio-1922”, em cartaz até dezembro.

O conjunto sediou o Pavilhão das Grandes Indústrias e foi pintado de rosa, ganhou um frontão neocolonial, além de uma torre, desmontada logo depois, assim como a maioria das instalações.

— Chama a atenção como o recurso público era nada na época. O Rio era uma cidade ainda meio Corte, caminhando para a modernidade — diz a arquiteta do MHN, Simone Kimura, uma das curadoras da “Rio-1922”. — Foram erguidos mais de 20 edifícios suntuosos e pouco duráveis, que os cariocas mal sabem que existiram.

População se deslocou para favelas e subúrbio

O Morro do Castelo sofreu sua primeira demolição ainda no começo do século XX, dentro das obras de remodelação do prefeito Pereira Passos. No lugar de um pedaço arrancado, foi erguida a Biblioteca Nacional, cujas costas passaram a dar para a área do morro conhecida como Chácara da Floresta. O morro, que perdeu sua importância política ainda no século XVIII, era ocupado basicamente por pequenos comerciantes e casas de aluguel. O professor Naylor Vilas Boas, que conseguiu mapear 800 moradores de lá, diz que havia muitos imigrantes italianos e portugueses, que viviam ao lado de igrejas e casas de pais e mães de santo. Para Marly Motta, era o lugar de batuques e de uma população negra que, ao se ver sem moradia com a demolição nos anos 1920, foi ocupar morros como os do Pinto e da Providência, além de áreas do subúrbio:

— Era um microcosmo da sociedade — diz Marly.

Na “colina sagrada”, que abrigava os restos mortais de Estácio de Sá, ficavam a Igreja de São Sebastião (antiga Sé) e o Convento dos Capuchinhos; um forte português em ruínas; e o Hospital São Zacarias, que ocupava o antigo colégio dos jesuítas, junto da Igreja de Santo Inácio. Também havia, em 1922, as ruínas de uma catedral nunca concluída e um observatório nacional, além da Escola Carlos Chagas. Naylor Vilas Boas hoje reconstitui digitalmente o morro, num trabalho que será apresentado no Museu Histórico Nacional no próximo mês de setembro.

Trem de entulho

O Castelo tinha 63 metros de altura e uma área de 184 mil metros quadrados, limitada pela Avenida Central e as ruas Santa Luzia, Misericórdia e São José. O seu arrasamento produziu 4,6 milhões de metros cúbicos de terra, que um trem ajudou a despejar no mar, aterrando a Glória e a popular Praia de Santa Luzia. O entulho continuou sendo usado depois para a construção do Aeroporto Santos Dumont.

No documentário “O desmonte do monte”, a cineasta Sinai Sganzerla mostra cenas de destruição:

— Foi um castigo com uma população que, para a elite, não poderia morar no Centro e num lugar tão belo, com vista para a baía. Foi mais uma tentativa de acabar com a memória e a cultura popular — afirma ela, que ainda tratou da lenda de um tesouro dos jesuítas escondido no morro. — O Brasil perdeu um dos seus sítios arqueológicos mais importantes.

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