São poucos os intelectuais que vivem no próprio corpo as ideias que pesquisam. A antropóloga francesa Nastassja Martin, que participou ontem da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao lado de Tamara Klink, é uma dessas exceções. Ela experimentou de maneira brutal a célebre divisão entre natureza e cultura, que opôs a impetuosidade do mundo natural à técnica com que os homens tentam subjugá-lo.
Munida da cultura ensinada nas universidades francesas, Nastassja foi à Sibéria estudar os even, povo indígena da região que, após a dissolução da União Soviética, voltou à tundra para viver da caça, da pesca e da coleta, como seus antepassados. Lá, ela foi atacada por um urso que destroçou seu maxilar. Mas a antropóloga levou a melhor na briga. Teve o rosto reconstruído por cirurgiões na Rússia e na França. “Meu maxilar de tornou palco de uma guerra fria hospitalar franco-russa”, escreveu ela no livro “Escute as feras” (Editora 34).
Tabloide do GLOBO sobre a Flip circula gratuitamente em Paraty
![Tabloide do GLOBO circula na feira literária desde 2008 — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/ztBp2J3wQo5Yx9qmi3ZjukLPefE=/0x0:3355x2237/648x248/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/A/R/3GxdNMTvuJ7OkJySzIww/101291078-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
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Tabloide do GLOBO circula na feira literária desde 2008 — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo
!['O tabloide mantém não só os visitantes, mas também a população de Paraty informada sobre a Flip', disse José Sérgio Barros, secretário de Cultura de Paraty — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/lByXD4c1FN9cJquKdaASU9JwOCg=/0x0:3960x2640/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/3/5/gL7jQiTeKWA2SkVqX3EQ/101291108-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
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'O tabloide mantém não só os visitantes, mas também a população de Paraty informada sobre a Flip', disse José Sérgio Barros, secretário de Cultura de Paraty — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo
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![Público lendo o tabloide do GLOBO antes do início de uma das mesas do evento — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/4Ak2sz2RSythR5hpu-kmBoXuboI=/0x0:2640x3960/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/J/h/XUVGsHSCmkQyOFOBKEUQ/101290870-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
![Público lendo o tabloide do GLOBO antes do início de uma das mesas do evento — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/2tIe9vkWYk5qw_5DpG4bMHSaJtw=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/J/h/XUVGsHSCmkQyOFOBKEUQ/101290870-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
Público lendo o tabloide do GLOBO antes do início de uma das mesas do evento — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo
![Versão impressa é exclusiva para os moradores de Paraty e visitantes da Flip, mas a publicação pode ser acessada por todos os assinantes pelo aplicativo do jornal — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/swQsuHKzYZnEu5ldWElmL72G-nk=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/8/y/BJ0ZynRzCP4sZAm5b93A/101291096-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
Versão impressa é exclusiva para os moradores de Paraty e visitantes da Flip, mas a publicação pode ser acessada por todos os assinantes pelo aplicativo do jornal — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo
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![Primeiro número circulou na quarta-feira (23), inclusive com uma mapa do Centro Histórico em que estavam localizados os principais pontos da festa — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/p5FBHsMfhyZPu6_bkM0zHuweYN0=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/M/B/bEA00uRIyZzr1ZH6lk8g/101291090-sc-paraty-rj-24-11-2022-flip-2022-publico-lendo-o-tabloide-antes-de-iniciar-a-mesa-3.jpg)
Primeiro número circulou na quarta-feira (23), inclusive com uma mapa do Centro Histórico em que estavam localizados os principais pontos da festa — Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo
A briga com o urso siberiano desorientou Nastassja, que, em vez de escrever o livro de antropologia que ela fora pesquisar na Rússia, dedicou-se a narrar seu processo de recuperação. Não só físico, mas também intelectual. Ser atacada por um urso mexeu com suas certezas e crenças. Todo mundo tinha um comentário a fazer sobre o ocorrido. Seus amigos even disseram que ela se transformara em uma miêdka, que é como eles chamam aqueles que sobrevivem ao encontro com um urso, mas ficam marcados, tornando-se metade humanos, metade ursos.
Nastassja, porém, foi em busca de sua própria interpretação. O resultado é “Escute as feras”, livro que mistura recursos literários e ensaísticos com um bocado de antropologia. Ela diz que gostou da experiência de escrever mais livremente — “sem me preocupar com as citações” — e afirma que a literatura pode ser “ferramenta política poderosa para os cientistas”.
— Tenho um problema com o que os cientistas chamam “vulgarização”, com a ideia de que temos que simplificar nosso trabalho para que as pessoas entendam o que fazemos, como se as pessoas não fossem capazes de pensamento complexo. Talvez o problema sejam as palavras que usamos. Como antropóloga, quero que as pessoas percebam que há outras maneiras de se relacionar com o mundo — diz Nastassja, cujo livro virou hit nas redes sociais de escritores brasileiros.
O lado de cá do mundo
Esta é a primeira passagem de Nastassja pelo Brasil. Ela se mostra interessada pelas questões indígenas brasileiras — da “bancada do cocar” eleita para o Congresso aos livros de Ailton Krenak e Davi Kopenawa — e brinca que vai tentar mudar a passagem de volta a Paris para passar mais uns dias por aqui. Ela celebra a popularização do pensamento indígena na cultura, mas alerta: não devemos instrumentalizar o conhecimento dos povos originários, como se tivessem uma receita infalível para nos livrar dos problemas que criamos.
— Nós, ocidentais, instrumentalizamos tudo em nosso benefício: a natureza e a cultura. Como instrumentalizar a natureza nos levou às mudanças climáticas, agora queremos instrumentalizar culturas nativas em busca de soluções — critica. — Vejo a antropologia como um trabalho de tradução. Eu espalho, para fora da floresta, a palavra que esses povos querem compartilhar conosco. Essas palavras podem ter efeitos na nossa política e na nossa economia. Mas muitos povos não precisam dos antropólogos para fazer isso. Aqui no Brasil, por exemplo, Kopenawa e Krenak falam com sua própria voz.
O trabalho de Nastassja na Rússia acabou. Quando ocorreu a invasão da Ucrânia, no início deste ano, ela teve um desentendimento com Dária e Ivan, os dois even que ela mais cita no livro. Segundo ela, muito indígenas russos foram convencidos pelo discurso de Vladimir Putin.
— Durante a União Soviética, os indígenas foram completamente assimilados, mas sua cultura, o que chamamos de folclore, foi preservada em museus. Eles deixam de viver suas culturas para representá-las para o público. Perderam tudo. Tanto que o discurso de Putin tem muito apelo entre eles, especialmente entre os homens jovens. Putin promete que eles vão voltar a ser guerreiros fortes e respeitados, como seus antepassados — lamenta Nastassja, que, impedida de voltar à Rússia, ainda está pensando onde fará suas próximas pesquisas antropológicas. — Acho que vai ser para o lado de cá do mundo.