“Costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas”, escreveu Lygia Fagundes Telles, como alternativa à morte e às desistências. Costurou enquanto pode, até chegar a inevitável hora da partida. Morreu amada como a escritora que cumpriu o desejo e o sonho anunciado tão cedo, aos 15 anos de idade, quando publicou o seu primeiro livro. Partiu como a maior de seu tempo, a autora mais completa, celebrada por seus pares e sobretudo por gerações de leitores que nunca param de chegar.
Escrever foi a sua forma de suturar as feridas da alma humana. Sem concessões. Não há miséria que não tenha sido contada por ela: morte, desengano, armadilha, violência. Mas há também na sua obra uma força espalhada nas decisões e nas camadas profundas de suas personagens. Sempre um gesto de coragem contundente, sempre uma mulher atravessando as marés, sempre os inconformados em porte de luta.
Temos muito a aprender com Lygia. Algumas das suas constatações sobre viver e escrever estão reunidas no livro “Durante aquele estranho chá”, crônicas de memória com feição de contos, no estilo sofisticado e elegante que é a sua marca. A primeira lição é de valor inestimável: a coisa mais importante de uma carreira são os amigos que fazemos, as relações de afeto e admiração trazidas pela profissão. Este livro é, também, uma homenagem aos grandes amigos de Lygia e a alguns encontros que marcaram sua trajetória.
A trajetória de Lygia Fagundes Telles em imagens
![A escritora paulista Lygia Fagundes Telles, , conhecida como "a dama da literatura brasileira"Anderson Prado](https://s2-oglobo.glbimg.com/eqA2_VYkzVK-HIX6IrPiZtt1sCI=/0x0:2464x1632/648x248/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/K/W/xt1jVLTXSO3C1lKl04wA/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996569739.jpg)
![A escritora paulista Lygia Fagundes Telles, , conhecida como "a dama da literatura brasileira"Anderson Prado](https://s2-oglobo.glbimg.com/1FawoJeQSPGslo1QKokm-5vNnIE=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/K/W/xt1jVLTXSO3C1lKl04wA/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996569739.jpg)
A escritora paulista Lygia Fagundes Telles, , conhecida como "a dama da literatura brasileira"Anderson Prado
![Integrante da Academia Brasileira de Letras, Lygia publicou seu primeiro livro de contos, de nome "Porões e sobrados", em 1938, mas considerava "Ciranda de Pedra" (1954) o marco inicial de suas obrasReprodução](https://s2-oglobo.glbimg.com/V2vBRv_F0WQG4qCyHNXUG9rjJhw=/0x0:2857x1856/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/R/O/d3rOruRFSX6obVPf6ysw/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997246918.jpg)
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Integrante da Academia Brasileira de Letras, Lygia publicou seu primeiro livro de contos, de nome "Porões e sobrados", em 1938, mas considerava "Ciranda de Pedra" (1954) o marco inicial de suas obrasReprodução
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![Lygia foi ganhadora de prêmios como o Jabuti e Camões, e é uma das autoras do manifesto dos intelectuais contra a censuraAgência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/s1bXox9OP7sWT9JW2vnXizxcxCE=/0x0:3500x4533/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/s/x/p4XPkZTyWoFDmF3drnIQ/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997343619.jpg)
![Lygia foi ganhadora de prêmios como o Jabuti e Camões, e é uma das autoras do manifesto dos intelectuais contra a censuraAgência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/kRqWBtjSjZeC5D-gyoRf7nNl_mU=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/s/x/p4XPkZTyWoFDmF3drnIQ/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997343619.jpg)
Lygia foi ganhadora de prêmios como o Jabuti e Camões, e é uma das autoras do manifesto dos intelectuais contra a censuraAgência O Globo
![Lygia Fagundes Telles, em 1977. Autora era a quarta ocupante da Cadeira nº 16 da ABL, tendo sido eleita em outubro de 1985, na sucessão de Pedro CalmonAgência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/V-HcpF0JIKpIrXFe2nAhiLe9BVM=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/g/a/XvsltKTnmXkJjqIF3XTg/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1649018406951.jpg)
Lygia Fagundes Telles, em 1977. Autora era a quarta ocupante da Cadeira nº 16 da ABL, tendo sido eleita em outubro de 1985, na sucessão de Pedro CalmonAgência O Globo
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![Lygia Fagundes Telles, em foto de 1971. Atenta às miudezas do humano, Lygia fez das zonas de mistério o cenário de suas narrativasArquivo](https://s2-oglobo.glbimg.com/rESFQN4IRKoisIRx9Iv9YLt_Um8=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/R/z/z4oiT1QY2h0tdeONOwbA/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996568874.jpg)
Lygia Fagundes Telles, em foto de 1971. Atenta às miudezas do humano, Lygia fez das zonas de mistério o cenário de suas narrativasArquivo
![Lygia em cerimônia na ABL. Escritora se tornou imortal em 1985. Seus livros mais importantes são "Antes do Baile Verde" (1970), "As Meninas" (1973), "Seminário dos Ratos" (1977) e o livro de contos "Filhos Pródigos" (1978)Guto Costa](https://s2-oglobo.glbimg.com/by_4oeaImt-imR7GFLtmcO9KoCw=/1536x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/4/X/hGxrIDSlK5ShU0r7xp8w/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996568093.jpg)
Lygia em cerimônia na ABL. Escritora se tornou imortal em 1985. Seus livros mais importantes são "Antes do Baile Verde" (1970), "As Meninas" (1973), "Seminário dos Ratos" (1977) e o livro de contos "Filhos Pródigos" (1978)Guto Costa
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![Em 1977, Lygia, junto de Hélio Silva (de óculos), Jeferson Ribeiro de Andrade (paletó xadrez) e Nélida Pinon (ao fundo), durante a entrega do Manifesto dos Escritores contra a Censura ao ministro da Justiça, Armando FalcãoAgência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/kOzH8L1wkA3vUR53zqogW9pj-4A=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/t/9/gmZFt1SYuYnlQFXUhquA/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-17-1649017059686.jpg)
Em 1977, Lygia, junto de Hélio Silva (de óculos), Jeferson Ribeiro de Andrade (paletó xadrez) e Nélida Pinon (ao fundo), durante a entrega do Manifesto dos Escritores contra a Censura ao ministro da Justiça, Armando FalcãoAgência O Globo
![Lygia Fagundes Telles com o argentino Jorge Luis Borges, num jantar em São Paulo, em 1984Acervo Pessoal](https://s2-oglobo.glbimg.com/NM9PvnKeadRmZkQ8cRDPt8ZqOYY=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/I/r/aXYVA8Q3a7G2j6AQp3vg/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996567154.jpg)
Lygia Fagundes Telles com o argentino Jorge Luis Borges, num jantar em São Paulo, em 1984Acervo Pessoal
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![Lygia com José Cândido de Carvalho, o jornalista Prudente de Moraes Neto e o historiador Sérgio Buarque de HollandaLivro "José Cândido de Carvalho - Vida e Obra"](https://s2-oglobo.glbimg.com/oLZYJjQcQDLrn4W8UnSHfkRs04o=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/p/v/vFiO0hTsK8oCTYBqyycw/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997910442.jpg)
Lygia com José Cândido de Carvalho, o jornalista Prudente de Moraes Neto e o historiador Sérgio Buarque de HollandaLivro "José Cândido de Carvalho - Vida e Obra"
![A escritora e o baiano Jorge Amado, em julho de 1997durante jantar pelo centenário da ABLundefined](https://s2-oglobo.glbimg.com/tua9XQjSHyRHMHklWfXKIBoJGqo=/1024x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/W/f/AxCw9aSmCdnqBOX7Mz1g/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997542011.jpg)
A escritora e o baiano Jorge Amado, em julho de 1997durante jantar pelo centenário da ABLundefined
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![Lygia Fagundes Telles com o marido, Paulo Emílio Salles Gomes: parceria e conselhos Álbum de família](https://s2-oglobo.glbimg.com/P2v7dbJCkIWNrWrXYjqjsSwhVWY=/1168x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/Y/U/DVahNqShGSeBO3kpyjAw/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648996566092.jpg)
Lygia Fagundes Telles com o marido, Paulo Emílio Salles Gomes: parceria e conselhos Álbum de família
![Em foto de 1978, Lygia (sentada à esquerda), na Casa do Sol, fundada por Hilda Hilst. Em pé, da esquerda para direita, homem desconhecido, Caio Fernando Abreu, Dante Casarini, Hilda Hilst, José Luis Mora Fuentes e J. Toledo; sentados, da esquerda para direita, Rofran Fernandes, Lygia Fagundes Telles, Roberto Cardoso, Edna Soëhninen Blumsfeld, Olga Bilenky e Maria Luiza Barreto. Acervo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp](https://s2-oglobo.glbimg.com/dzrXRSwl7BFCG9iYXjV_5ikDQ1o=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/p/1/4jzhEkSK2B6iUHQnTcKw/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997888808.jpg)
Em foto de 1978, Lygia (sentada à esquerda), na Casa do Sol, fundada por Hilda Hilst. Em pé, da esquerda para direita, homem desconhecido, Caio Fernando Abreu, Dante Casarini, Hilda Hilst, José Luis Mora Fuentes e J. Toledo; sentados, da esquerda para direita, Rofran Fernandes, Lygia Fagundes Telles, Roberto Cardoso, Edna Soëhninen Blumsfeld, Olga Bilenky e Maria Luiza Barreto. Acervo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp
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![Lygia e a também imortal Nélida Piñon em 2015Agência O Globo](https://s2-oglobo.glbimg.com/ZLwynoYC1pEcEBjCodg22uz3w3Y=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/C/y/SaiescSueDMJNkKpZkqA/3.glbimg.com-v1-auth-0ae9f161c1ff459593599b7ffa1a1292-images-escenic-2022-4-3-11-1648997145529.jpg)
Lygia e a também imortal Nélida Piñon em 2015Agência O Globo
Ela conta, com amor e graça, dos seus momentos com Clarice Lispector, Hilda Hilst, Monteiro Lobato, Simone de Beauvoir, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges, entre outros nomes que atravessaram o seu pensamento de forma definitiva, deixando suas marcas.
Da convivência com Clarice, há a segunda lição: o de não se levar a sério demais, não partir do pressuposto da superioridade. Em um congresso de escritores em Cali, na Colômbia, as duas estranharam as caras muito sisudas, a pose, o peito estufado, a vaidade, a fala rebuscada dos colegas. Trocaram tudo isso por uma rodada de vinho e espumante, uma conversa leve. Lygia foi ao evento preparada para dizer que a literatura é como os anjos, não tem gênero, mas ao invés disso teve de explicar para a plateia colombiana que brasileiros falam português.
A terceira lição é sobre a pressa que os jovens escritores tem de aparecer de qualquer maneira. Ela mesma se arrepende dos livros que publicou cedo demais, custeando a edição. É mais prudente ter paciência, deixar que a vida mostre as coisas que o autor precisa saber para que o texto tenha profundidade, camadas, sentido. “Um escritor desesperado é uma contradição”, ela disse.
A quarta lição ela aprendeu com Borges: o mais importante da vida é o sonho. Quando ela pergunta que mensagem ele poderia deixar naquela despedida, ele comenta sobre um amigo que desistiu de viver quando desaprendeu a sonhar. Isso é central, importante, é dínamo perpétuo.
A quinta lição aparece quando ela conta a reação de Drummond às críticas que Mário de Andrade fez à sua poesia. Apenas seguiu. “A vida não era uma ordem? Então, toca a prosseguir implacável, fiel consigo mesmo numa caminhada não sobre nuvens mas na dureza do asfalto. Acariciando não a cabeleira da fantasia mas agarrado aos ásperos cabelos do cotidiano e no qual se há radiosas estrelas”.
Amar os amigos; não derrapar no orgulho e na vaidade; ter paciência; acreditar nos sonhos e aceitar a vida como uma ordem, sendo fiel a si mesmo. Costurar as feridas até o limite possível. Escrever é também doar uma parte da vida aos leitores. Em cada livro há um pedaço da alma de Lygia, que passa a ser nossa, que se expande no poder inesgotável das palavras. É como um milagre de transubstanciação: um corpo que vira livro e se multiplica, um delírio, uma ideia borgiana que agradaria Lygia, uma mulher que acreditava nos milagres e nos sonhos.
Socorro Acioli é escritora e professora de Literatura da Pós-Graduaçao em Escrita e Criação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)