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Por Renata Izaal — Rio de Janeiro


A escritora Eliana Alves Cruz lança seu quarto romance, 'Solitária', o primeiro passado no Brasil contemporâneo, em que aborda as sequelas da escravidão, o trabalho doméstico e o racismo — Foto: Divulgação/ Chico Cerchiaro
A escritora Eliana Alves Cruz lança seu quarto romance, 'Solitária', o primeiro passado no Brasil contemporâneo, em que aborda as sequelas da escravidão, o trabalho doméstico e o racismo — Foto: Divulgação/ Chico Cerchiaro

Eliana Alves Cruz dedica seu quarto romance a sua tia Maria da Glória, a Dodó, “cujo rosto nunca vi e de quem apenas sei que o trabalho nunca a libertou.”

Iniciar “Solitária”, recém-lançado pela Companhia das Letras, com uma alusão à expressão “só o trabalho liberta” — que percorreu um longo caminho dos livros de filologia do século XIX até ser colocada na entrada dos campos de extermínio nazistas — é um primeiro passo, quase um aviso, do mergulho que a autora dará nas páginas seguintes na violência, por vezes sutil, do racismo no Brasil.

— Foi uma alusão proposital à lógica do “Não pense, trabalhe” criada intencionalmente pela elite e que só agrava as nossas disparidades, as sequelas da escravidão — explica Eliana, em entrevista realizada por vídeo, sobre o livro, seu primeiro passado no Brasil contemporâneo.

“Solitária” trata de trabalho doméstico, apartheid, segregação e cárcere. É narrado pela trabalhadora doméstica Eunice e por sua filha Mabel, duas mulheres negras que durante anos dividem um “quartinho” nos fundos do apartamento de uma família rica em um prédio de elite no Rio. Um pouco como no filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, elas lidam de formas diferentes com as situações vividas na casa. E é justamente dentro dessa relação de afeto que se fortalecem e despertam para a crueldade extrema do racismo.

Grilhão mental

A escritora Eliana Alves Cruz, autora do romance 'Solitária', editado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação/Chico Cerchiaro
A escritora Eliana Alves Cruz, autora do romance 'Solitária', editado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação/Chico Cerchiaro

“A senhora precisa se libertar dessas pessoas”, diz a estudante Mabel à mãe, uma trabalhadora doméstica ligada economicamente e afetivamente à família branca que a explora dizendo coisas como “é quase da família”, mas exigindo que ela e a filha fossem invisíveis e silenciosas na casa, que estivessem presentes sem estar — e ainda fossem gratas por tudo aquilo.

— É um grilhão mental. Eunice está condicionada a ser grata a quem parece ter lhe facilitado os caminhos. Isso é uma amarra profunda, uma síndrome de Estocolmo — diz Eliana, para quem mulheres negras e brancas estão presas nessas relações e as reproduzem em outros espaços da sociedade. — Se você bobear, cai nessa armadilha.

Para chegar ao momento em que Eunice diz que tem que deixar aquele trabalho “só que ele também precisava sair de dentro de mim”, Eliana passeia pelo Brasil contemporâneo. Há ódio racial e de classe, bandeiras verde e amarelo surgem nas janelas, há trabalho análogo à escravidão, violência doméstica, e a dor da mãe negra e pobre que perde o filho de maneira trágica, evocando a morte do menino Miguel, filho de Mirtes Renata, que em 2 de junho de 2020 caiu de um prédio no Recife quando estava aos cuidados da patroa da mãe.

— A pandemia escancarou a realidade das trabalhadoras domésticas no Brasil. A Dona Lúcia (patroa de Eunice no livro) não é apenas uma mulher branca, ela é uma instituição brasileira — afirma Eliana sobre a personagem que “não consegue viver sem uma empregada” e não suporta saber que a filha da doméstica vai cursar Medicina em uma universidade pública.

A educação (o livro também trata das cotas nas universidades) é fundamental para que Mabel deixe o “quartinho da empregada”, que sim, tem o tamanho de uma solitária, para conhecer uma outra solidão, aquela que é sinônimo de liberdade: uma casa sua e uma vida autônoma.

— O escritor é uma testemunha de seu tempo. Meu livro é uma denúncia e uma reflexão sobre os valores da nação. Por quanto tempo vamos repetir padrões que não deram certo para a maioria da população? — questiona Eliana.

Machado de Assis branco

'Solitária', romance da escritora Eliana Alves Cruz, editado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação
'Solitária', romance da escritora Eliana Alves Cruz, editado pela Companhia das Letras — Foto: Divulgação

Para contar as histórias de Eunice e Mabel, Eliana Alves Cruz constrói uma temporalidade circular (“isso é das filosofias e culturas africanas, que não separam os tempos”) e tece referências a Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo e à antilhana Françoise Egas.

— É uma homenagem a elas que se debruçaram sobre esse tema e finalmente estão sendo ouvidas. A intelectualidade negra foi roubada, até Machado de Assis era branco na nota de mil cruzados — conta ela, que terá seu segundo romance “O crime no Cais do Valongo” como parte do Programa Nacional do Livro Didático. — Desfilei no Salgueiro e na Beija-Flor. Fui a Nilópolis conversar com as crianças, levei livros. Na minha infância, eu não vi uma escritora de perto. Isso é uma mudança de padrões.

'Solitária'.
Autora: Eliana Alves Cruz. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 168. Preço: 54,90.

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