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Por — Rio de Janeiro

No livro “Segredos do romance policial”, publicado no Brasil pela Três Estrelas em 2012, a escritora inglesa P. D. James parte de uma frase de Robert Browning para afirmar que a história de detetive, embora em seu ponto mais alto “possa também funcionar no limiar perigoso das coisas”, se distingue “tanto do romance padrão como dos romances de crime em geral por sua estrutura altamente organizada e suas convenções estabelecidas”. Nas últimas décadas, não foram poucos os autores que se dedicaram a estilhaçar tais regras. É de se olhar com atenção, portanto, quando Marie NDiaye publica um thriller que pretende abraçar o limiar perigoso de que falam Browning e James enquanto conduz o leitor por zonas escorregadias. NDyane, lembremos, ganhou em 2009 o Goncourt, prestigioso prêmio francês, pelo romance “Três mulheres fortes”.

Desde o início, tudo está fora de lugar em “A vingança é minha”, aqui traduzido por Marília Scalzo. No dia 5 de janeiro de 2019, Gilles Principaux entra no escritório da dra. Susane, uma advogada ordinária de Bordeaux, e pede que defenda sua mulher em um caso brutal: num fim de tarde, pouco depois de buscar os três filhos na escola, Marlyne matou as crianças.

Mas não é bem o crime o nervo do romance, e sim o que se desenvolve a partir da visita de Principaux: dra. Susane é arremetida de volta à infância, quando julga tê-lo conhecido e ficado a sós com ele em seu quarto, por algumas horas.

Aos poucos, a advogada desancora o mundo ao redor, a começar pela empregada, Sharon, imigrante das Ilhas Maurício de cujo processo de imigração ela se encarrega. E também os amigos, os pais — superprotetores, a quem ela ama tanto, “às vezes tão dolorosamente”, que sonha, aflita, infeliz e culpada, com o fim deles— , e o ex-marido, Rudy, seu melhor amigo e confidente, de cuja filha ela se sente mãe.

Dissoluções

A aposta na volatilidade dos personagens, sempre falsos duplos embaralhados em si mesmos, dá o caminho da história, guiada por uma atualização do protagonista sem nome — não é difícil lembrar de Dashiell Hammett e seu “Continental Op”. Posicionar a advogada como filtro para o acesso aos coadjuvantes, no fim das contas, nunca permite que suas criaturas se revelem, embora mostrem suas zonas cinzentas.

Por sua vez, prolongar aquele dia no bairro de Caudéran, no quarto de um possível Gilles Principaux, tem efeito duplo sobre a advogada: suprime o que não é possível de se lidar no passado e desloca as estruturas de tudo aquilo com o qual é preciso lidar no presente, cujo maior símbolo são os pais, insuportáveis. O resultado, algo denso, produz abalos que ampliam a intenção de uma possível hospedagem no thriller psicológico.

Mas a promessa nem sempre se cumpre. Em certos momentos, o excesso de dissolução é tamanho que o romance não se firma nem como thriller nem como possível drama familiar. A sensação é de que falta lastro, mesmo que pouco.

Os melhores momentos de “A vingança é minha” surgem justo quando Gilles e Marlyne conversam com a dra. Susane e, cada um à sua maneira, expõem seus íntimos — o que nem sempre acontece quando os senhores Susane entram em cena. É ao exibir todo o seu potencial narrativo, decalcado das intenções policiais, que NDiaye transforma o romance num livro de fato bom.

E se não é possível ficar indiferente a dra. Susane, o mesmo acontece com Sharon. Correndo em paralelo até assumir papel central, o périplo burocrático, acoplado à história de Rudy, rende a boa ideia de transportar a trama para fora de Bordeaux, o que sublinha as dinâmicas de classe e do capital na questão colonial patroa-empregada. Não fosse a ironia de um acontecimento mal arranjado, seria o fecho perfeito para uma história que nunca quis se conformar às convenções e soube extrair dessa recusa suas melhores partes.

Mateus Baldi é escritor e jornalista. Mestre em Letras (PUC-Rio), é autor de “Formigas no paraíso”

‘A vingança é minha’

Autora: Marie NDiaye. Tradução: Marília Scalzo. Editora: Todavia. Páginas: 200. Preço: R$ 74,90. Cotação: ótimo.

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