A escritora francesa Nathalie Léger tem anos de experiência em seu trabalho como curadora e pesquisadora de arquivos. Organizou exposições sobre Roland Barthes e Samuel Beckett e, atualmente, é diretora do IMEC, instituto que reúne arquivos e estudos relacionados às principais casas editoriais francesas. Seu primeiro livro publicado no Brasil, “A exposição” (com tradução de Letícia Mei), não existiria sem esse contexto e essa experiência de fundo. Trata-se de uma narrativa ensaística — com toques de relato detetivesco e de autobiografia — em torno da figura de Virginia Oldoini, Condessa de Castiglione (1837-1899), aristocrata e agente secreta italiana, amante do imperador Napoleão III de França e personagem central na história da fotografia, atuando como modelo e colaboradora do então renomado fotógrafo Pierre-Louis Pierson (1822-1913).
Pierson, escreve a autora, “realizará a obra fotográfica mais enigmática de sua época, uma obra ao mesmo tempo secreta e emblemática, ao fotografar essa mulher durante 40 anos, registrando sem pestanejar seu fausto e sua decadência”.
O livro de Léger é uma investigação que parte de uma curiosidade: quem foi essa mulher tão intensamente fotografada em uma época em que a fotografia ainda era uma novidade?
Nascida em 1960, Léger é muito habilidosa na mistura que faz de análise e narrativa, ou seja, o modo como articula a sua própria jornada como narradora (e pesquisadora) e a jornada da Condessa de Castiglione, acessível apenas por meio das imagens e dos relatos feitos por contemporâneos e admiradores (“nenhum contemporâneo foi mais fotografado que essa mulher”, escreve a autora).
Chamar a atenção
Em determinado ponto da narrativa, a reflexão sobre a condessa se transforma em uma reflexão sobre a posição do feminino na sociedade ao longo do tempo.
Léger, sutilmente, inicia um movimento de análise das diferentes formas de “exposição” reservadas às mulheres, desde a época de Castiglione até hoje: estratégias para “chamar a atenção” tanto na vida privada quanto na vida pública, as poses, os gestos e as performances necessárias para a configuração dessa experiência, e assim por diante.
O ponto de partida está na cena da pose da condessa diante do fotógrafo, repetida centenas de vezes: “é preciso imaginar”, escreve Léger, “a tortura imposta pelo tempo de exposição”, a necessidade de uma “imobilidade do olhar”, “uma firmeza que desfaz todo aprumo”.
O que torna o relato de Nathalie Léger tão interessante e agradável ao leitor é o modo como escapa frequentemente de seu tema principal, buscando associações e paralelos com outras cenas e personagens. Vários personagens culturais são mobilizados para compor um “retrato de grupo” com a Condessa de Castiglione, desde Franz Kafka e Marilyn Monroe, passando por Barthes, Marguerite Duras, Truman Capote e Cindy Sherman, sempre agregando novos elementos à investigação.
Em paralelo a esse caleidoscópio de referências, emerge sempre a figura da organizadora e da narradora — a própria Léger, que incorpora seu trabalho e seu cotidiano à manifestação narrativa de seu fascínio pela condessa.
Léger, por exemplo, redescobre “as fotos de infância da minha mãe”, “pequenas fotos de bordas serrilhadas, mais raramente grandes formatos, retratos, cenas de praia em Nice, festas à fantasia, terraços ensolarados”.
A tentativa de “colocar em ordem” as fotos da mãe leva a narradora a uma “passagem obscura que engana”, um “corredor numa casa vazia e apagada”: não se sabe ao certo o que é, mas parece indicar essa zona indistinta da memória na qual a História se mistura à intimidade, e já não sabemos o que pertence ao arquivo “público” o que pertence ao álbum familiar. É desse equilíbrio de tensões que surge a força estética de “A exposição”.
* Kelvin Falcão Klein é professor de Letras