Cultura
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Antes mesmo de começar, a cerimônia do 49ª edição do César, principal premiação do cinema francês, vinha sendo tratada pela imprensa local como um "momento decisivo" no país. Havia a expectativa de que o forte posicionamento contra o abuso sexual na indústria tornasse histórica a noite desta sexta-feira (23). A comoção em torno do discurso da atriz Judith Godrèche, que acusou os diretores Benoît Jacquot e Jacques Doillon de estupro, mostrou que o país vive a sua própria versão (ainda que tardia) do movimento #metoo.

O César estendeu o tapete vermelho para a avalanche de denúncias de agressões sexuais que tomaram conta da França. Há quatro anos, quando o #MeToo já tinha força marcante nos EUA, o César ignorou os protestos das mulheres e premiou o diretor Roman Polanski, condenado pelo estupro de uma menor de idade nos EUA. A decisão gerou o abandono, durante a premiação, da diretora Céline Sciamma e da atriz Adèle Haenel, indicadas por “Retrato de uma jovem em chamas”.

Ao convidar Godrèche para o palco em 2024, a academia francesa deixou claro a mudança de rumo. A atriz de 51 anos foi aplaudida de pé pelo público presente no teatro, uma cena impensável até pouco. Ao longo da fala, ela criticou a omissão do cinema da França diante as acusações de assédio na indústria.

— Já faz algum tempo que estou falando, estou falando, mas não consigo ouvir vocês — criticou. — Onde vocês estão? O que vocês dizem? Um sussurro. Meia palavra. Eu sei que é assustador. Perder subsídios. Perder papéis. Perder o emprego. Eu também estou com medo.

Ela tinha 14 anos, ele 39

No início de fevereiro, Godrèche apresentou queixa contra o diretor de cinema Benoît Jacquot, 25 anos mais velho. A relação entre os dois começou na primavera de 1986, quando Godrèche tinha apenas 14 anos, e terminou em 1992. Godrèche afirma ter permanecido “sob seu controle” por seis anos, estrelando dois filmes que ele dirigiu, “Les Mendiants” (“Os Mendigos”), em 1988, e “La Desenchantee” (“Os Desencantados”) em 1990.

Jacquot insiste que a primeira relação sexual entre os dois só aconteceu depois dela ter completado 15 anos, idade mínima permitida por lei. A atriz, por sua vez, o acusa de diversas violências físicas, sexuais e psicológicas, que teriam acontecido antes disso.

O cineasta Benoît Jacquot — Foto: AFP
O cineasta Benoît Jacquot — Foto: AFP

Abuso em público

Na mesma denúncia feita à polícia, Godrèche relatou ainda duas experiências traumáticas com o cineasta Jacques Doillon durante as filmagens de “La fille de quinze ans” (A garota de 15 anos), em 1989. Ela tinha 15 anos na época e, ele, 45. O diretor teria abusado dela em seu escritório, enquanto ensaiavam sozinhos para a produção. Mais tarde, durante as filmagens, Doillon demitiu o ator que faria uma cena com Godrèche e tomou o seu lugar.

“De repente, (Jacques Doillon) decide que há uma cena de amor, uma cena de sexo entre ele e eu. E aí, fazemos 45 tomadas. E eu tiro meu suéter e estou sem camisa, e ele me apalpa e me beija de língua”, recordou ela em um programa de televisão.

O último caso aconteceu diante de toda a equipe do filme. No local, também estava presente a cantora e atriz Jane Birkin, ex-mulher de Doillon. Godrèche afirma que Birkin teria ficado perplexa, mas impotente, assim como diversos membros da equipe.

O diretor Jacques Doillon — Foto: AFP/ Valery Hache
O diretor Jacques Doillon — Foto: AFP/ Valery Hache

'Cumplicidade' da imprensa

O último relato tocou em um ponto sensível no país. Desde que o #metoo francês ganhou tração, vieram à tona diversas histórias que parecem comprovar uma certa normalização da violência sexual no mundo cultural francês. Nas palavras de Godrèche, uma “parte do cinema, e da imprensa que falava de cinema, validava (os abusos) e era cúmplice”.

Sinal dos tempos, tradicionais revistas de cinema fizeram seu mea culpa em textos publicados este mês. O semanário Télérama reconheceu a existência de um “sistema de mídia”, cujos elogios aos diretores teriam de fato servido de cumplicidade aos seus abusos. “O que estava debaixo dos nossos olhos e éramos incapazes de ver?”, indagou a publicação.

A lendária Les Cahiers du cinéma relembrou a sua própria admiração por Jacquot, sempre elogiado pelos críticos da revisa. “Se todo mundo sabia que atriz menor vivia com o diretor, por que ninguém foi buscar mais longe do que a ficção? Principalmente porque estava em jogo aí uma certa ideia de autor, defendida notadamente aqui na Cahiers: o cineasta misturava sua vida e seus filmes, sua prática e sua estética”.

Nos anos 1950, a Cahiers teve entre seus críticos futuros diretores da Nouvelle Vague, como Jean-Luc Godard e François Truffaut. Eles lançaram alguns princípios estéticos que foram seguidos por discípulos e estão presentes até hoje nos textos da revista. Tanto Benoît Jacquot quanto Jacques Doillon fazem parte de uma terceira geração da Nouvelle Vague, e por isso sempre tiveram amigos e admiradores na redação. Também é o caso de Phillipe Garrel, acusado de comportamento inapropriado com suas atrizes.

'O último Casanova'

No ano passado, uma reportagem do site investigativo Mediapart trouxe o depoimento de treze atrizes e profissionais do cinema que acusavam o ator Gérard Depardieu de abusar delas sexualmente nos sets de filmagem. Muitas teriam se queixado para membros da equipe na época, mas sem ser levadas a sério. Segundo elas, todos sabiam do comportamento do ator, mas fechavam os olhos por se tratar de uma lenda da indústria.

Recentemente, o próprio presidente Emmanuel Macron defendeu o ator o chamando de “monstro sagrado” em um pronunciamento oficial. Por outro lado, a ministra da cultura Rachida Dati expressou apoio a Godrèche em uma entrevista publicada na última sexta-feira no site “Le Film français”.

Reportagem de 2019 do Liberátion diz que Jacquot "não renuncia ao seu amor pelos filmes e pelas garotas" — Foto: Reprodução Libération
Reportagem de 2019 do Liberátion diz que Jacquot "não renuncia ao seu amor pelos filmes e pelas garotas" — Foto: Reprodução Libération

Da mesma forma, a relação de Jacquot com Godrèche era pública, conhecida na indústria e na imprensa. Há apenas cinco anos, o jornal Libération definia o diretor de 72 anos como “o último Casanova” em um perfil dedicado a ele. “(Jacquot) não renuncia a sua paixão pelos filmes e pelas garotas”, dizia a publicação. No mês passado, circulou nas redes um comentário de Jacquot gravado em 2011 para um documentário do psicanalista Gerard Miller sobre “personalidades e anônimos que transgrediram seus princípios para viver seu amor”. No trecho em questão, o diretor afirma que o relacionamento com Godrèche era uma “transgressão”, e o cinema dava “cobertura” para isso.

— Sim, foi uma transgressão — diz Jacquot no vídeo. — Pelo menos no que diz respeito à lei, tal como é dita, não temos esse direito em princípio, creio eu. Uma garota como ela, como essa Judith, que na verdade tinha 15 anos, não tinha direito. Mas ela estava se lixando para isso, e até ficou muito excitada com isso, eu diria.

Gerard Miller admitiu que um documentário com tais depoimentos nunca teria sido produzido nos dias de hoje. Logo depois, foi ele próprio denunciado por abusar de menores de idade, em alguns casos fazendo uso de hipnose em seu consultório psiquiátrico.

Novas acusações

Após a denúncia de Godrèche, outras atrizes resolveram contar suas próprias histórias envolvendo Jacquot e Doillon. Laurence Cordier e Julia Roy pintaram Jacquot como narcisista violento que manipula atrizes jovens em início de carreira. Isild Le Besco disse que Doillon a retirou da preparação de um filme de 2001 depois que a adolescente, então com 17 anos, negou seus avanços sexuais. A atriz Sarah Grappin disse que o falecido diretor Alain Corneau a estuprou quando ela era adolescente.

Integrante da AAFA (Associação de atrizes e atores da França), Nathalie Mann disse à revista SudOuest que, para esses diretores, as mulheres eram meros “objetos de desejo que existem para revelar o gênio masculino”.

O lançamento do próximo filme de Jacquot, “CE2”, acaba de ser confirmado para março. O longa tem como protagonista uma aluna do terceiro ano primário que é assediada por dois meninos.

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